São Paulo, quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

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NINA HORTA

Um tinto encorpado para ler

O guia do Manoel Beato é primoroso porque não te ensina mais do que você agüenta saber

MARIA VIU a uva. Viu a uva. Quem foi mesmo que viu a viúva? Eva? Ivo?
Vamos ao dicionário do Houaiss. Além da viúva clássica, aquela que tem o marido morto e que não se casou de novo, está lá a outra, a viúva má, déspota, aquela que nunca mais se casará por praga dos editores e escritores, a destruidora e fundadora de estilos. Mora em artes gráficas e quer dizer "linha quebrada". E o que quer dizer "linha quebrada"? É que uma linha não pode acabar nunca, antes que acabe o espaço reservado para ela. Se alguém escrever de menos, dá viúva. Demais, também pode dar... É tirânica, chata.
E quem fala em viúva, fala em uva.
Tenho nas mãos o "Guia de Vinhos Larousse", de Manoel Beato, o sommelier do Fasano que, às vezes, duvida da minha ignorância. Ela (a ignorância) estacionou, continuo bebendo porque gosto, mas a quantidade das espécies de uvas, de terroirs e de classificações me derrota.
Leio com atenção os nossos críticos, aprecio livros sobre vinhos, presto atenção nas notas do Parker, nos vôos do Rolland, nas pechinchas da Jancis Robinson. Mas, se estou com os vinhos indicados por eles, não os acho nas lojas, e se acho algum vinho na loja é que esqueci a lista.
Não pensem que é gênero, já tentei estudar seriamente, aprender a reconhecer o que bebia. Pela internet. O meu amigo Horta escolheu uns vinhos na Mistral, espanhóis. Ele de um lado com duas garrafas, eu do outro. Levei broncas homéricas por adjetivos mal usados, como gosto de "fundo de gaveta" e "armário", para carvalho envelhecido, falhei nas groselhas e framboesas (sempre que leio que um vinho sabe a madeira e framboesas fico pensando na mistura esdrúxula), mas confesso que as aulas valeram bastante. Pelo menos me tornei fã dos espanhóis, cada um melhor que o outro. Se tivesse continuado o curso, já seria "master of wines".
Mas voltemos ao guia do Manoel Beato. Primoroso porque não te ensina mais do que você agüenta saber. O excesso de informação é que confunde os principiantes. E foi a intenção do Beato, pois cita logo de início Décio Pignatari. "O assunto que hoje abordo é dos que mais me atiçam o sangue das idéias. Por isso mesmo quero evitar a tentação e a tentativa de dizer tudo de uma só vez."
O Beato conseguiu o máximo da concisão agradável e bem-escrita.
Descreveu os tipos de vinho que existem, explicou o que são origens, produtor e uvas, como pode ser o processo de vinificação, o que quer dizer a idade e, "last, but not least", o preço. Já vimos tudo isso antes, mas não assim, bem explicado, claríssimo, sem desperdício de adjetivos.
Aprendemos a ler um rótulo, como comprar, como conservar e servir um vinho e ainda estamos na página 30, já harmonizando vinhos e comidas. Acho esta parte estimulante porque, quer saber? Vale tudo.
Sempre achei que essa escolha vai muito do estado de espírito de cada um, do lugar e da hora. Uma galinha de cabidela, escura, densa, aveludada, pode pedir um vinho de luto, como a própria, quase roxo, as lágrimas escorrendo pelo copo. Mas por que não uma coisa clara, fresca, cheia de bolinhas (sei falar pétillant, mas não me atrevo), que justamente enterrasse em sadia alegria o humor trágico do prato?
Pois daí até a página 43 temos regras de harmonização prontas a serem obedecidas ou desobedecidas. E a quarta parte é bastante interessante, pois começa pelo Novo Mundo, e o Novo Mundo é sempre o último a ser abordado. Cada país com sua lista de vinhos com nota e tudo. No fim um glossário de termos. Você sabe o que é "trasfegas"? Não? Tão fácil....
Gostei, aprendi tudo de novo, agora parece que me agüento sábia por uns meses. Tento, então, classificar o guia do Beato como ele classifica os vinhos. É um tinto, encorpado, vivaz, moderno, para ler agora ou depois, R$ 29, 222 páginas.


ninahorta@uol.com.br

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