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São Paulo, terça-feira, 25 de fevereiro de 2003

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FERNANDO BONASSI

Os sacrifícios

Brinquinho tem oito anos. Podemos dizer que é pequinês. É, podemos... se bem que há muito seus antepassados deixaram de lado essa veleidade demasiado humana de "não se misturar". Se misturaram, de forma que chamar Brinquinho de pequinês é apenas pra dar alguma orientação ao leitor. Na verdade, Brinquinho tem aquele formato impreciso do vira-lata total: atarracado, pêlo irregular, pernas tortas, cor de cidra e problemas respiratórios. Ainda por cima é dentuço. A língua pende pra fora da boca. O olho molhado. A orelha comprida raspando nas poças.
Orlando tem 35 anos e faz bico de segurança. Pega às seis da tarde e larga às sete da manhã. Todo dia. Fim de semana também. Chega em casa, guarda o 32 num saco de flanela por cima do guarda-roupa, toma café e dorme. Até o entardecer, quando acorda pra jantar (ou almoçar, como queiram...) e sai pro trabalho de novo. Aliás, desde as oito e meia está sentado na mesa. Descabelado. Olho molhado. Vira-lata. Noite longa. Festa de firma em museu de arte.
-Confusão na entrada o tempo todo!
Os atrasados rasgando convites e jogando na sua cara. Depois ainda teve que achar táxi pra todo mundo, bêbados. Agora, diante dele, a garrafa térmica, a leiteira e o saco de pãezinhos que trouxe. A mulher e os três filhos também. Brinquinho está lá fora, embaixo do tanque. Todo retorcido.
-Tem certeza?
Ninguém responde. A mulher fica pescando casquinhas de pão da toalha e mordiscando. Orlando indica o quintal comum às seis famílias, além da porta:
-Reclamaram de novo?
A mulher faz que "sim", mas é mais como se ela deixasse a cabeça pender pelo pescoço. A menina e os dois menores olham direto pro pai. Brinquinho passou as últimas 12 horas berrando, agora está gemendo.
-Será que eu vou conseguir dormir?
A mulher dá de ombros. Está dizendo: "Depende de você". As crianças entreolham-se. Estão dizendo: "Você, você, você...". Orlando pega um pãozinho, corta. Vai buscar manteiga. Está gelada. Sai um bloco duro. Tenta passar no pão. Por pouco não se fura. As crianças não deixam de reparar nisso. O menor chega a virar o rosto. Orlando larga a faca de repente.
-Devia levar noutro lugar. Não é comum aceitar a opinião do primeiro médico.
A mulher espeta quatro dedos no ar, pra dizer a quantidade de veterinários que procurou. Todos a mesma coisa. Orlando sabe. Foi mais por via das dúvidas.
-Tá certo...
Em seguida se serve de café com leite. Morde o pão. A placa de manteiga vem pra sua boca. Fica pendurada. Ele empurra, mastiga. Bebe por cima. Engasga.
-Doença maldita.
Sorri amarelo:
-Dormiram bem?
Não se muda o assunto assim naquele dia. Orlando pensa o que aconteceria se levantasse e saísse andando sem olhar pra trás. Balbucia:
-O que aconteceria?
Fica pensando nisso. Mais um instante. Quem o interrompe é o filho do meio, deixando escapar um choro cuspido. Depois chora o menor. Sem vergonha. No fim, da menina também escorre uma lágrima. Uma só. Só de um lado.
-Então não tem jeito?
Não se sabe se Orlando pergunta ou suplica. De todo modo, ninguém se manifesta. Fica batucando na xícara. As crianças fungando. A mulher faz um barulho com a boca, franze o rosto e desaparece pra dentro do quarto. Orlando liga a televisão por cima da geladeira: o dólar, o Iraque, o presidente de helicóptero.
A mulher reaparece com o saco de flanela. Não segura pelo cordão. Empunha, dedo no gatilho.
-Pelo amor de Deus!
Nem é uma bronca, mas Orlando avança pra mulher e toma-lhe a arma. Não sabendo o que fazer, guarda no forno, junto com uma panela de óleo velho e as duas frigideiras que grudam.
-Posso acabar o café, pelo menos?
A mulher dá de ombros outra vez. Orlando continua no pãozinho, agora sem manteiga. Brinquinho começa a ganir embaixo do tanque. Faz um eco rachado no corredor.
A mulher de Orlando desembrulha a marmita. Metade sem comer. Joga no lixo e lava. Quando o cachorro deixa, dá pra ouvir a torneira. Orlando termina o pão. Espreguiça-se. É disfarce. Todo mundo sabe.
-Já volto.
Ergue-se. Apanha o revólver no forno. Lança um olhar pra família. Sai. Ouve a mulher aumentar a televisão: os juros, Israel, um ministro de helicóptero.
Brinquinho também se levanta quando chega o dono. O miserável ainda lambe o sapato dele. Orlando olha pra trás, na direção da rua. Os carros pipocando de reflexos; lá longe, na marginal. Chega a dar um passo naquela direção.
-O que aconteceria?
Então Orlando desembrulha o 32 e se volta. Enquanto avança, engatilha; depois fecha os olhos e faz de uma vez o que tem de ser feito.


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