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FERNANDO BONASSI
Os sacrifícios
Brinquinho tem oito anos.
Podemos dizer que é pequinês. É, podemos... se bem que há
muito seus antepassados deixaram de lado essa veleidade demasiado humana de "não se misturar". Se misturaram, de forma
que chamar Brinquinho de pequinês é apenas pra dar alguma
orientação ao leitor. Na verdade,
Brinquinho tem aquele formato
impreciso do vira-lata total: atarracado, pêlo irregular, pernas tortas, cor de cidra e problemas respiratórios. Ainda por cima é dentuço. A língua pende pra fora da
boca. O olho molhado. A orelha
comprida raspando nas poças.
Orlando tem 35 anos e faz bico
de segurança. Pega às seis da tarde e larga às sete da manhã. Todo
dia. Fim de semana também.
Chega em casa, guarda o 32 num
saco de flanela por cima do guarda-roupa, toma café e dorme. Até
o entardecer, quando acorda pra
jantar (ou almoçar, como queiram...) e sai pro trabalho de novo.
Aliás, desde as oito e meia está
sentado na mesa. Descabelado.
Olho molhado. Vira-lata. Noite
longa. Festa de firma em museu
de arte.
-Confusão na entrada o tempo todo!
Os atrasados rasgando convites
e jogando na sua cara. Depois
ainda teve que achar táxi pra todo mundo, bêbados. Agora, diante dele, a garrafa térmica, a leiteira e o saco de pãezinhos que trouxe. A mulher e os três filhos também. Brinquinho está lá fora, embaixo do tanque. Todo retorcido.
-Tem certeza?
Ninguém responde. A mulher
fica pescando casquinhas de pão
da toalha e mordiscando. Orlando indica o quintal comum às seis
famílias, além da porta:
-Reclamaram de novo?
A mulher faz que "sim", mas é
mais como se ela deixasse a cabeça pender pelo pescoço. A menina
e os dois menores olham direto
pro pai. Brinquinho passou as últimas 12 horas berrando, agora
está gemendo.
-Será que eu vou conseguir
dormir?
A mulher dá de ombros. Está dizendo: "Depende de você". As
crianças entreolham-se. Estão dizendo: "Você, você, você...". Orlando pega um pãozinho, corta.
Vai buscar manteiga. Está gelada. Sai um bloco duro. Tenta passar no pão. Por pouco não se fura.
As crianças não deixam de reparar nisso. O menor chega a virar o
rosto. Orlando larga a faca de repente.
-Devia levar noutro lugar.
Não é comum aceitar a opinião
do primeiro médico.
A mulher espeta quatro dedos
no ar, pra dizer a quantidade de
veterinários que procurou. Todos
a mesma coisa. Orlando sabe. Foi
mais por via das dúvidas.
-Tá certo...
Em seguida se serve de café com
leite. Morde o pão. A placa de
manteiga vem pra sua boca. Fica
pendurada. Ele empurra, mastiga. Bebe por cima. Engasga.
-Doença maldita.
Sorri amarelo:
-Dormiram bem?
Não se muda o assunto assim
naquele dia. Orlando pensa o que
aconteceria se levantasse e saísse
andando sem olhar pra trás. Balbucia:
-O que aconteceria?
Fica pensando nisso. Mais um
instante. Quem o interrompe é o
filho do meio, deixando escapar
um choro cuspido. Depois chora o
menor. Sem vergonha. No fim, da
menina também escorre uma lágrima. Uma só. Só de um lado.
-Então não tem jeito?
Não se sabe se Orlando pergunta ou suplica. De todo modo, ninguém se manifesta. Fica batucando na xícara. As crianças fungando. A mulher faz um barulho com
a boca, franze o rosto e desaparece pra dentro do quarto. Orlando
liga a televisão por cima da geladeira: o dólar, o Iraque, o presidente de helicóptero.
A mulher reaparece com o saco
de flanela. Não segura pelo cordão. Empunha, dedo no gatilho.
-Pelo amor de Deus!
Nem é uma bronca, mas Orlando avança pra mulher e toma-lhe
a arma. Não sabendo o que fazer,
guarda no forno, junto com uma
panela de óleo velho e as duas frigideiras que grudam.
-Posso acabar o café, pelo menos?
A mulher dá de ombros outra
vez. Orlando continua no pãozinho, agora sem manteiga. Brinquinho começa a ganir embaixo
do tanque. Faz um eco rachado
no corredor.
A mulher de Orlando desembrulha a marmita. Metade sem
comer. Joga no lixo e lava. Quando o cachorro deixa, dá pra ouvir
a torneira. Orlando termina o
pão. Espreguiça-se. É disfarce. Todo mundo sabe.
-Já volto.
Ergue-se. Apanha o revólver no
forno. Lança um olhar pra família. Sai. Ouve a mulher aumentar
a televisão: os juros, Israel, um
ministro de helicóptero.
Brinquinho também se levanta
quando chega o dono. O miserável ainda lambe o sapato dele. Orlando olha pra trás, na direção da
rua. Os carros pipocando de reflexos; lá longe, na marginal. Chega
a dar um passo naquela direção.
-O que aconteceria?
Então Orlando desembrulha o
32 e se volta. Enquanto avança,
engatilha; depois fecha os olhos e
faz de uma vez o que tem de ser
feito.
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