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CARLOS HEITOR CONY
Apontamentos para Guimarães Rosa
Nunca um livro ficou tão
amarrado à sua geografia
quanto o romance de Guimarães
Rosa. A começar pelo título,
"Grande Sertão" , que se repete ao
longo do texto: "O sertão está em
toda parte". Ou este outro: "O sertão está dentro da gente". Em linhas esquemáticas, a geografia
do romance abrange a região do
São Francisco, perto de Urucuia,
pegando o norte de Minas, o sul
da Bahia e o leste de Goiás -o
próprio centro geográfico do Brasil. A marcação física do romance
absorve para a literatura nacional um território que, até então,
fora mencionado por Afonso Arinos, mas não conquistado.
O nome do pai, Florduardo, serve de chave para a linguagem de
toda a sua obra. O menino introvertido se espantava com o nome
do pai. Todos os pais têm nomes
simples. E justamente o seu tinha
um nome que era uma aglutinação de flor com Eduardo. Por quê?
Quando começou a escrever, ele
procurava juntar palavras, às vezes para criar uma outra, às vezes
para nada mesmo, só para ver o
resultado. O processo não era exclusividade sua. Joyce (e, antes de
Joyce, outros autores, inclusive o
maranhense Sousândrade) usou
do mesmo recurso para criar surpreendentes efeitos literários.
Na véspera de sua posse na Academia, encontrei-o pela última
vez. O sinal da rua Raul Pompéia
com a avenida Rainha Elizabeth
fechara, e eu reparei que dois homens preparavam-se para atravessar a pista. Chovia e era noite.
Apesar da miopia, da chuva e da
noite, os olhos de gato de Guimarães Rosa me descobriram dentro
do carro. A seu lado, vinha Franklin de Oliveira, talvez o seu admirador mais fanático.
O guarda-chuva pingando, Rosa aproximou-se:
- Não me deixe sozinho amanhã. Preciso de palmas na Academia.
- Você terá muitas palmas. E
não estará sozinho.
- Mas vá assim mesmo.
Buzinaram atrás de mim, e tive
de avançar. Pelo retrovisor, vi a
silhueta dos dois amigos tentando
alcançar a calçada oposta. E só
então reparei que Guimarães Rosa falara comigo naturalmente.
Antes, quando o encontrava pelas
manhãs no posto 6, ele a caminho
do Itamaraty e eu a caminho da
praia, a sua saudação era sempre
barroca:
- Salve o amigo matinal e audaz!
Uma tarde, tentou explicar a diferença entre um buriti e uma
palmeira que resistia na avenida
Atlântica. Para resumir, terminou dizendo, talvez, uma de suas
melhores e mais espontâneas frases:
- No fundo, dá tudo na mesma.
Cordisburgo significa cidade do
coração. Foi palavra inventada
pelo missionário que fundou a cidade, padre João de Santo Antônio, que desejava homenagear o
Sagrado Coração de Jesus. Juntou
a palavra latina cordis, genitivo
de cor (coração), com o sufixo anglo-saxônico burgo, que significa
burgo mesmo. A explicação do
nome de sua cidade natal foi dada pelo próprio Guimarães Rosa,
na abertura do seu discurso de
posse na Academia. E, mais uma
vez, demonstrou a preocupação
que o acompanhava desde menino com a formação das palavras.
A crítica se empolgou com o recurso literário, e muitos leitores ficaram pasmos. Antes dele, em várias passagens do "Ulisses", James
Joyce explodira a linguagem, inventando novas palavras: whrusalaminyourhighhhhohhhhh, elteskelterpelterwelter.
Para uso próprio, preferimos
comparar "Grande Sertão" com
outra obra-prima produzida no
século 20: "Dr. Fausto". No livro
de Thomas Mann, o compositor
Adrian Leverskuhen persegue a
obra-prima e vende sua alma ao
demônio, tal como o seu antepassado goethiano.
Thomas Mann e Guimarães
Rosa eram, acima de tudo, dois
humanistas no sentido pleno da
palavra. Eles espremeriam dentro
de suas histórias, por mais banais
que elas parecessem, a carga cultural que os condicionava. Daí,
muita gente tirou suas conclusões
a respeito do "Dr. Fausto" e o regime nazista. E pelo mesmo processo muitos leitores e críticos enxergaram na obra de Guimarães
Rosa uma ontologia, uma metafísica e até mesmo uma teologia.
O certo é que o romance de Rosa
guarda todas as proporções de
epopéia medieval -é o próprio
sertão que serve de cenário, sujeito, predicado e complemento do
romance. Uma ilha medieval cravada no imenso corpo do Brasil.
Assim compreendido, "Grande
Sertão" resulta numa canção de
gesta, em que o trovador (o ex-jagunço Riobaldo) narra -ou canta- para um presumível ouvinte
"a sua vida de aventura, tendo
como leitmotiv o seu amor impossível por Diadorim e a sua ânsia
do Absoluto".
Guimarães Rosa não chegou,
como querem alguns, a criar uma
língua realmente nova, embora
tenha usado uma linguagem própria. Quem está habituado a ler
os clássicos, sobretudo os quinhentistas, identifica o filão que
abasteceu a prosa de Rosa. Temos
o exemplo de um texto conhecido,
o da carta de Pero Vaz Caminha:
"Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade,
a qual bem certo creia que, para
aformosentar nem afear, a que
não há de por mais do que aquilo
que eu vi e que me pareceu". Se
procurarmos outros exemplos em
frei Luís de Souza e Gil Vicente,
chegaremos à conclusão de que
Guimarães Rosa revisitou, criativamente, o português arcaico, do
qual ainda existem resíduos, ilhas
isoladas no arquipélago de nossa
linguagem oral.
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