São Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

Apontamentos para Guimarães Rosa

Nunca um livro ficou tão amarrado à sua geografia quanto o romance de Guimarães Rosa. A começar pelo título, "Grande Sertão" , que se repete ao longo do texto: "O sertão está em toda parte". Ou este outro: "O sertão está dentro da gente". Em linhas esquemáticas, a geografia do romance abrange a região do São Francisco, perto de Urucuia, pegando o norte de Minas, o sul da Bahia e o leste de Goiás -o próprio centro geográfico do Brasil. A marcação física do romance absorve para a literatura nacional um território que, até então, fora mencionado por Afonso Arinos, mas não conquistado.
O nome do pai, Florduardo, serve de chave para a linguagem de toda a sua obra. O menino introvertido se espantava com o nome do pai. Todos os pais têm nomes simples. E justamente o seu tinha um nome que era uma aglutinação de flor com Eduardo. Por quê?
Quando começou a escrever, ele procurava juntar palavras, às vezes para criar uma outra, às vezes para nada mesmo, só para ver o resultado. O processo não era exclusividade sua. Joyce (e, antes de Joyce, outros autores, inclusive o maranhense Sousândrade) usou do mesmo recurso para criar surpreendentes efeitos literários.
Na véspera de sua posse na Academia, encontrei-o pela última vez. O sinal da rua Raul Pompéia com a avenida Rainha Elizabeth fechara, e eu reparei que dois homens preparavam-se para atravessar a pista. Chovia e era noite. Apesar da miopia, da chuva e da noite, os olhos de gato de Guimarães Rosa me descobriram dentro do carro. A seu lado, vinha Franklin de Oliveira, talvez o seu admirador mais fanático.
O guarda-chuva pingando, Rosa aproximou-se:
- Não me deixe sozinho amanhã. Preciso de palmas na Academia.
- Você terá muitas palmas. E não estará sozinho.
- Mas vá assim mesmo.
Buzinaram atrás de mim, e tive de avançar. Pelo retrovisor, vi a silhueta dos dois amigos tentando alcançar a calçada oposta. E só então reparei que Guimarães Rosa falara comigo naturalmente. Antes, quando o encontrava pelas manhãs no posto 6, ele a caminho do Itamaraty e eu a caminho da praia, a sua saudação era sempre barroca:
- Salve o amigo matinal e audaz!
Uma tarde, tentou explicar a diferença entre um buriti e uma palmeira que resistia na avenida Atlântica. Para resumir, terminou dizendo, talvez, uma de suas melhores e mais espontâneas frases:
- No fundo, dá tudo na mesma.
Cordisburgo significa cidade do coração. Foi palavra inventada pelo missionário que fundou a cidade, padre João de Santo Antônio, que desejava homenagear o Sagrado Coração de Jesus. Juntou a palavra latina cordis, genitivo de cor (coração), com o sufixo anglo-saxônico burgo, que significa burgo mesmo. A explicação do nome de sua cidade natal foi dada pelo próprio Guimarães Rosa, na abertura do seu discurso de posse na Academia. E, mais uma vez, demonstrou a preocupação que o acompanhava desde menino com a formação das palavras.
A crítica se empolgou com o recurso literário, e muitos leitores ficaram pasmos. Antes dele, em várias passagens do "Ulisses", James Joyce explodira a linguagem, inventando novas palavras: whrusalaminyourhighhhhohhhhh, elteskelterpelterwelter.
Para uso próprio, preferimos comparar "Grande Sertão" com outra obra-prima produzida no século 20: "Dr. Fausto". No livro de Thomas Mann, o compositor Adrian Leverskuhen persegue a obra-prima e vende sua alma ao demônio, tal como o seu antepassado goethiano.
Thomas Mann e Guimarães Rosa eram, acima de tudo, dois humanistas no sentido pleno da palavra. Eles espremeriam dentro de suas histórias, por mais banais que elas parecessem, a carga cultural que os condicionava. Daí, muita gente tirou suas conclusões a respeito do "Dr. Fausto" e o regime nazista. E pelo mesmo processo muitos leitores e críticos enxergaram na obra de Guimarães Rosa uma ontologia, uma metafísica e até mesmo uma teologia.
O certo é que o romance de Rosa guarda todas as proporções de epopéia medieval -é o próprio sertão que serve de cenário, sujeito, predicado e complemento do romance. Uma ilha medieval cravada no imenso corpo do Brasil.
Assim compreendido, "Grande Sertão" resulta numa canção de gesta, em que o trovador (o ex-jagunço Riobaldo) narra -ou canta- para um presumível ouvinte "a sua vida de aventura, tendo como leitmotiv o seu amor impossível por Diadorim e a sua ânsia do Absoluto".
Guimarães Rosa não chegou, como querem alguns, a criar uma língua realmente nova, embora tenha usado uma linguagem própria. Quem está habituado a ler os clássicos, sobretudo os quinhentistas, identifica o filão que abasteceu a prosa de Rosa. Temos o exemplo de um texto conhecido, o da carta de Pero Vaz Caminha: "Todavia tome Vossa Alteza minha ignorância por boa vontade, a qual bem certo creia que, para aformosentar nem afear, a que não há de por mais do que aquilo que eu vi e que me pareceu". Se procurarmos outros exemplos em frei Luís de Souza e Gil Vicente, chegaremos à conclusão de que Guimarães Rosa revisitou, criativamente, o português arcaico, do qual ainda existem resíduos, ilhas isoladas no arquipélago de nossa linguagem oral.


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