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FERNANDO GABEIRA
Até breve com imagem e som digitais
Possivelmente já morri.
Dois grandes shows no Brasil, atraindo milhares de pessoas,
e busquei o conforto da televisão,
com direito a intervalos para o
banheiro.
Um dos shows, o dos Stones,
aconteceu perto da minha casa.
Desde cedo senti uma atmosfera
de euforia na zona sul. Muita
gente, carros na calçada, chope,
calor, as vozes nos bares subindo
como se mãos invisíveis aumentassem o volume do som, através
do balcão.
Calculei que era melhor a TV.
Claro que meu cálculo seria mais
acertado com melhor qualidade
de imagem e de som. Mas ainda
não chegou a TV digital. O governo discute muito sobre o padrão a
ser adotado. Temo, a julgar pela
experiência com câmeras e celulares, que, ao tomarem a decisão
final, o quadro de opções já estará
mudado. Os ritmos da tecnologia
não respeitam os da política.
Os shows me alegraram. Escrevi
algumas vezes sobre como o 11 de
Setembro e as tensões que iria gerar abriam uma possibilidade nova para o Brasil. Guerra no
Oriente Médio, atentados em metrópoles européias e, agora, todos
os conflitos em torno das charges
de Muhammad confirmaram essa tendência.
Meus escritos, na época, eram
endereçados aos ministros da
Cultura e do Turismo. Pensei então que, sendo a paz o fundamento básico de nossa política externa, poderíamos nos abrir para
grandes festivais que tratassem,
diretamente ou não, do assunto.
Na verdade, não acredito muito
no lado explicitamente político
desses shows. Mesmo Bob Marley,
vindo dos bairros pobres de
Kingston, tinha um discurso para
a juventude negra na Europa,
mas era ouvido por milhares de
pessoas que não se interessam especificamente por isso.
Bono veio falar da fome. Tudo
bem. Já no último Live Aid, produzido por Bob Geldoff, intelectuais etíopes lembravam que o
combate central à fome vai se dar
pela correção das distorções no
comércio internacional. Bono sabe disso pois freqüenta Davos, e lá
essas coisas são mencionadas, ao
menos de vez em quando.
Da mesma maneira, a tolerância religiosa é um tema bom para
ser lançado de São Paulo. Das
metrópoles que conheço, foi uma
das que resolveram de forma satisfatória a convivência entre as
religiões. Bono falou o nome de
alguns Estados, mas, com a sensibilidade da história irlandesa e
da atualidade do Oriente Médio,
poderia ter ressaltado esta característica diante de seus olhos.
Grandes estrelas pop sempre
vão visitar presidentes e dirão coisas sem nenhuma responsabilidade com a repercussão na política
interna. Isto pode se dar de barato. O próximo show, por exemplo,
é de Santana: possivelmente vai
se dançar mais.
A passagem dos Stones e do U2
reafirma para mim não só análise do passado sobre as chances turísticas culturais do Brasil mas
lembra também que não conseguimos neutralizar nossa principal vulnerabilidade: a falta de
uma política consistente para atenuar a violência urbana.
Na medida em que o Brasil se
abrir para esses festivais de verão,
novos grupos aparecem e com posições as mais variadas sobre política, desde uma distância saudável até a hostilidade.
Portanto, a sensação de que esses festivais favorecem um ou outro partido é passageira. O que está pela frente é a possibilidade de
se ampliar o turismo, criar um nicho, já tentado pelo Rock in Rio, e
fazer do país uma plataforma para a cultura de paz, o que daria
uma dimensão popular ao fundamento de nossa política externa.
Para confirmar que morri, vou
me fechar no Carnaval, soterrado
por textos inacabados, relatórios
e, como diz um amigo, muita costura para fora. O governo tem
tempo para refletir sobre essa possibilidade turística e interferir de
forma positiva. Os cálculos do Rio
mostraram resultado favorável
do ponto de vista econômico.
O que o governo deveria apressar mesmo é a decisão sobre a televisão digital. A vida dos que ficaram em casa, poderia ter sido
enriquecida por uma imagem
com definição maior, um som
mais límpido. São respostas que
dependem de base técnica e a forma de consulta ampla, por mais
democrática que pareça, nem
sempre atinge os melhores resultados.
Se até o ano que vem isso não
estiver resolvido, o caminho será
voltar à praia para ouvir os
shows. A multidão não é muito
diferente da que se concentra no
Réveillon. O dilema será: ela ou
TV digital? Encerrei prematuramente minha carreira nesses cercadinhos com convites. A única
vez que fui, recusei-me a usar as
camisetas de propaganda. Saí
com um gosto de nunca mais.
Entre a multidão e cercadinhos,
mil vezes a multidão. Creio que
ela não se sentirá traída se eu optar pela minha casa. Aquela imagem dos celulares acesos no Morumbi mostra que até mesmo as
pessoas comprimidas na praia ou
no estádio terão o espetáculo na
palma da mão.
Ao mencionar os celulares acesos e ligá-los às possibilidades da
TV digital, os técnicos vão supor
que tomo posições. Mas os técnicos sabem que nada entendo do
assunto. É apenas o palpite de alguém que não apenas quer se libertar do analógico, mas também
dos fios. Hoje já se faz quase tudo
nos celulares. Por que não mostrar os grandes shows?
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