São Paulo, segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

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NELSON ASCHER

Esquerda e direita hoje


O trabalho de detetive consiste em descobrir onde é que estão e qual a forma que assumiram

GENTE cujas opiniões merecem a atenção acredita que, hoje em dia, não faz mais sentido falar em direita e esquerda. Esta dicotomia forjada no cadinho da Revolução Francesa teria se tornado obsoleta, superada que foi pelos fatos e pela complexidade de um mundo diferente. De resto, a direita clássica se desmoralizara definitivamente com o Holocausto, enquanto sua contrapartida entrara em crise terminal entre 1989 e 1991.
Uns neonazis pingados, de um lado, inscrevendo suásticas saudosas nas lápides de cemitérios judaicos e, do outro, carpideiras senis chorando suas derradeiras lágrimas pela morte anunciada do tiranete que reinou meio século sobre o penúltimo retalho ilhado de utopia puída, tais figuras marginais despertam menos apreensão que melancolia.
Imaginar, porém que maneiras tão arraigadas de pensar foram devidamente sepultadas com os cacoetes que as tornavam reconhecíveis num determinado período histórico equivale a confundir fantasia de carnaval com uma mortalha de verdade. Como o diabo, cujo principal estratagema é convencer-nos de que não existe, esquerda e direita, embora troquem de roupa conforme a moda, vieram para ficar. O trabalho de detetive consiste em descobrir onde é que estão a cada momento e qual a forma que assumiram.
Não sou, é claro, nem de longe o primeiro a observar que esquerda e direita são duas faces da mesma moeda. Cada qual tem muito mais a ver com seu suposto avesso do que com inúmeras outras visões de mundo. Entre os elementos que as aproximam está a centralidade, nelas, da política. Tanto para direitistas como esquerdistas, tudo vem e retorna a essa esfera. As demais dimensões da vida humana ou decorrem dela ou, então, devem servi-la.
Mas não é só. Talvez o que compartilhem mais intimamente seja a idéia de que a realidade não é, nem ao menos contém, algo desordenado. O mundo, para quem sabe lê-lo e interpretá-lo, é um livro aberto e coerente, um mecanismo cujas partes estão todas no lugar apropriado. O real não é a um tempo resultado e gerador de incontáveis linhas de força, não advém de um sem-número de decisões individuais tomadas necessariamente a partir de uma quantidade insuficiente de informações e que redundam, por isso mesmo, numa série de conseqüências imprevistas. Pelo contrário, de acordo com elas, uma vez que se tenha em mãos o modelo interpretativo correto, é fácil não somente hierarquizar tudo o que ocorre, como determinar seus inevitáveis desfechos.
Uma forma mais humilde de abordar o que há sugeriria que, num universo tão superpovoado de variáveis, chegar até mesmo a um acordo a respeito do que ocorreu aqui ou ali pode exigir uma discussão complexíssima. Sabemos pouco da história (se bem que seu conhecimento seja cumulativo), mal entendemos as minúcias do presente e, portanto, caso tenhamos de arriscar previsões de qualquer tipo, convém fazê-lo com cautela, sublinhando sempre nossas dúvidas e incertezas. Ocorre que esta, a maneira moderna por excelência de estar no mundo, ou seja, a de buscar juntar lascas adicionais de informação operando de preferência com hipóteses conscientemente provisórias, parece estressante demais para muitos, em especial para os que preferem a ação.
A certeza de que a realidade pode ser plenamente compreendida e explicada através de poucas varáveis é um pressuposto insubstituível para os espíritos ambiciosos. A grande maioria dos indivíduos se preocupa em maior ou menor medida com a coisa pública e até com os destinos da humanidade, sem, no entanto, julgar que imensas e profundas transformações da sociedade ou da natureza e do comportamento humano sejam desejáveis, sequer possíveis. Nem o esquerdista nem o direitista, contudo, pensa pequeno. Para eles não se trata, digamos, de melhorar os salários ou reduzir a poluição atmosférica -medidas apenas "paliativas". A questão é mudar a dinâmica de toda a produção, criar uma cultura que faça o homem ter metas diferentes e assim por diante.
O assunto, extenso para uma única coluna, continua na próxima. Vale, no entanto, a pena lembrar ainda uma outra distinção. Para a garotada que usa categorias não como forma de enriquecer o debate, mas como meio de demonização, não existe mais direita. O que há, tudo que pode haver do lado oposto, é extrema direita. A verdade, todavia, é que direita e esquerda têm, sim, suas variantes extremas, e o que as define é, sobretudo, a centralidade da/e o culto à violência. Quanto a como identificá-las no mundo atual, bom, isso fica para a semana que vem.


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