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NELSON ASCHER
Esquerda e direita hoje
O trabalho de detetive consiste em descobrir onde é que estão e qual a forma que assumiram
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GENTE cujas opiniões merecem a atenção acredita que,
hoje em dia, não faz mais
sentido falar em direita e esquerda.
Esta dicotomia forjada no cadinho
da Revolução Francesa teria se tornado obsoleta, superada que foi pelos fatos e pela complexidade de um
mundo diferente. De resto, a direita
clássica se desmoralizara definitivamente com o Holocausto, enquanto
sua contrapartida entrara em crise
terminal entre 1989 e 1991.
Uns neonazis pingados, de um lado, inscrevendo suásticas saudosas
nas lápides de cemitérios judaicos e,
do outro, carpideiras senis chorando suas derradeiras lágrimas pela
morte anunciada do tiranete que
reinou meio século sobre o penúltimo retalho ilhado de utopia puída,
tais figuras marginais despertam
menos apreensão que melancolia.
Imaginar, porém que maneiras
tão arraigadas de pensar foram devidamente sepultadas com os cacoetes que as tornavam reconhecíveis
num determinado período histórico
equivale a confundir fantasia de carnaval com uma mortalha de verdade. Como o diabo, cujo principal estratagema é convencer-nos de que
não existe, esquerda e direita, embora troquem de roupa conforme a
moda, vieram para ficar. O trabalho
de detetive consiste em descobrir
onde é que estão a cada momento e
qual a forma que assumiram.
Não sou, é claro, nem de longe o
primeiro a observar que esquerda e
direita são duas faces da mesma
moeda. Cada qual tem muito mais a
ver com seu suposto avesso do que
com inúmeras outras visões de
mundo. Entre os elementos que as
aproximam está a centralidade, nelas, da política. Tanto para direitistas como esquerdistas, tudo vem e
retorna a essa esfera. As demais dimensões da vida humana ou decorrem dela ou, então, devem servi-la.
Mas não é só. Talvez o que compartilhem mais intimamente seja a
idéia de que a realidade não é, nem
ao menos contém, algo desordenado. O mundo, para quem sabe lê-lo e
interpretá-lo, é um livro aberto e
coerente, um mecanismo cujas partes estão todas no lugar apropriado.
O real não é a um tempo resultado e
gerador de incontáveis linhas de força, não advém de um sem-número
de decisões individuais tomadas necessariamente a partir de uma
quantidade insuficiente de informações e que redundam, por isso mesmo, numa série de conseqüências
imprevistas. Pelo contrário, de acordo com elas, uma vez que se tenha
em mãos o modelo interpretativo
correto, é fácil não somente hierarquizar tudo o que ocorre, como determinar seus inevitáveis desfechos.
Uma forma mais humilde de abordar o que há sugeriria que, num universo tão superpovoado de variáveis, chegar até mesmo a um acordo
a respeito do que ocorreu aqui ou ali
pode exigir uma discussão complexíssima. Sabemos pouco da história
(se bem que seu conhecimento seja
cumulativo), mal entendemos as
minúcias do presente e, portanto,
caso tenhamos de arriscar previsões
de qualquer tipo, convém fazê-lo
com cautela, sublinhando sempre
nossas dúvidas e incertezas. Ocorre
que esta, a maneira moderna por excelência de estar no mundo, ou seja,
a de buscar juntar lascas adicionais
de informação operando de preferência com hipóteses conscientemente provisórias, parece estressante demais para muitos, em especial para os que preferem a ação.
A certeza de que a realidade pode
ser plenamente compreendida e explicada através de poucas varáveis é
um pressuposto insubstituível para
os espíritos ambiciosos. A grande
maioria dos indivíduos se preocupa
em maior ou menor medida com a
coisa pública e até com os destinos
da humanidade, sem, no entanto,
julgar que imensas e profundas
transformações da sociedade ou da
natureza e do comportamento humano sejam desejáveis, sequer possíveis. Nem o esquerdista nem o direitista, contudo, pensa pequeno.
Para eles não se trata, digamos, de
melhorar os salários ou reduzir a poluição atmosférica -medidas apenas "paliativas". A questão é mudar a
dinâmica de toda a produção, criar
uma cultura que faça o homem ter
metas diferentes e assim por diante.
O assunto, extenso para uma única coluna, continua na próxima. Vale, no entanto, a pena lembrar ainda
uma outra distinção. Para a garotada
que usa categorias não como forma
de enriquecer o debate, mas como
meio de demonização, não existe
mais direita. O que há, tudo que pode haver do lado oposto, é extrema
direita. A verdade, todavia, é que direita e esquerda têm, sim, suas variantes extremas, e o que as define é, sobretudo, a centralidade da/e o culto à violência. Quanto a como identificá-las no mundo atual, bom, isso fica para a semana que vem.
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