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A "virtus dormitiva" da CNBB
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
O mundo era menor: obediente e fiel às nossas convicções. Houve um tempo, bem me
recordo, em que um par de conceitos -as "contradições do
capitalismo" e o "imperialismo"- resolvia qualquer parada. Da explosão demográfica
ao surto de meningite; da censura à marginalidade social;
do trânsito ao acidente nuclear; do milagre ao esgotamento do modelo -o diagnóstico final era sempre o mesmo.
Nada que uma dialética criteriosa, rica em nuances e bem
apanhada não pudesse resolver. Tudo dependia, é claro,
das "devidas mediações".
O economista austríaco
Schumpeter captou perfeitamente o espírito daquele tempo
ao observar, sobre um terremoto que devastou Tóquio, que
pelo menos um grande mérito
ele teve: ninguém acusou o capitalismo de ser responsável
pelo desastre.
De resto, porém, pouco sobrava. Pouco sobrevivia à fúria de
"uma completa sobriedade
científica na análise de um estado de coisas objetivo", que é
como Lênin caracterizava o
(verdadeiro) marxismo.
Tudo se passava como no final de "O Burguês Fidalgo", de
Molière. Um estudante vai
prestar o exame oral para se
tornar doutor em medicina. A
banca examinadora, composta
por luminares da escolástica,
pergunta por que o ópio provoca o sono. O candidato, cheio
de confiança, responde: "Porque ele contém um princípio
dormitivo".
Resposta impecável, nota
máxima. Os doutores ficam
impressionadíssimos. A "virtus
dormitiva" pode ser qualquer
coisa, desde que adormeça o
pensamento e embale o sono
dogmático. Desde que alcance
o enfeitiçamento da inteligência por meio da magia entorpecedora de certas palavras.
Os tempos mudaram. Os antigos demônios foram saindo à
francesa do nosso discurso -os
franceses, é claro, sempre foram mestres inigualáveis do
riscado ideológico- e vão encontrando um merecido repouso na lata de lixo da história
das idéias. Embora ainda pipoquem envergonhados aqui e
ali, longe vai o tempo em que
"contradições do capitalismo"
e "imperialismo" serviam de
pau dialético para toda obra.
Os rótulos e as fantasias persecutórias mudam, mas os cacoetes intelectuais permanecem. Como alguém que já padeceu do vício, talvez eu tenha
uma atenção especial para a
coisa. É impossível folhear uma
revista ou jornal hoje em dia e
não se dar conta de que o escaninho conceitual antes ocupado pelos bodes expiatórios da
velha guarda possui agora novos inquilinos.
A operação, no fundo, é simples. Trata-se essencialmente
de uma versão light -edulcorada e adaptada aos novos
tempos- dos princípios dormitivos que davam conta do
recado no mundo pré-queda do
Muro de Berlim. Onde se lia
"contradições do capitalismo"
e "imperialismo", leia-se agora
"neoliberalismo" e "globalização".
Que eu saiba, ninguém até
aqui conseguiu atribuir a eles
tragédias como as provocadas
pelo El Niño ou pelo último terremoto colombiano. De resto,
porém, não sobra muito. Afinal, do que não foram ainda
acusados esses monstruosos demônios doutrinários -"máquinas infernais", no dizer de
Pierre Bourdieu- do nosso
tempo?
A lista é interminável, e cada
leitor, se tiver paciência, pode
fazer a sua própria coleção. É
fantástico como os exemplos
pululam e se multiplicam de
forma incontrolável depois que
passamos a prestar um rabo de
atenção neles. Ocorre que, de
tempos em tempos, surgem preciosidades que não podem passar sem registro.
Confesso que quando li, na
última "Veja", um resumo crítico do texto-base elaborado
pela CNBB para a Campanha
da Fraternidade deste ano
("Sem Trabalho... Por quê?")
fiquei incrédulo.
Aquilo era demais. Seria possível uma coisa dessas? E a publicação sendo divulgada, ainda por cima, na mesma semana em que, por ironia do destino, ficamos sabendo que o papa João Paulo 2º tentou sorrateiramente pressionar o governo britânico a libertar Pinochet? Resolvi checar.
Estava já acessando o documento dos bispos na Internet
quando meu filho, que cursa o
ensino fundamental (antigo
primeiro grau), chateado por
eu estar monopolizando o computador dele (o meu não está
na rede), apareceu com a publicação que eu buscava na
mão. Vão usá-la como material didático na escola, explicou, reassumindo o controle do
computador. De posse do original, comecei a leitura.
O que logo ficou claro é que,
por mais inacreditável que pudesse parecer, não havia exagero na matéria de "Veja". Era
aquilo mesmo. Da eugenia na
China ao confisco de Collor,
passando pela proliferação de
condomínios fechados, eu já tinha visto o neoliberalismo ser
acusado das coisas mais esdrúxulas no passado. A nova cartilha da CNBB foi além.
O neoliberalismo, sustentam
os bispos, é um do "fruto do pecado", que tem como resultado
uma "cultura da morte" na
qual "cada vez mais os espertalhões e os sem ética vão faturando e consumindo mais". É
ler para crer.
Parágrafo 121 ("A Astúcia do
Sistema Neoliberal"): "Esta
cultura coloca no ringue do livre mercado a exacerbação da
luta livre entre todos e na qual
o mais forte e o mais astuto
vence. Esta cultura da luta livre, sem ética e sem moral, sob
o império da violência, trabalha muito com o espetáculo do
grotesco, a excitação dos desejos mais profundos no ser humano, especialmente a força
do erotismo, da sexualidade e
da violência".
Diante de passagens como essa (e muitas outras poderiam
ser citadas), fica difícil saber
onde termina a ignorância e
onde começa a má-fé. Pífio na
argumentação, o texto lateja
ódio, rancor e ressentimento
por todos os poros.
Pena que alguns fatos recalcitrantes não tenham sido considerados. Se mercados livres
fossem sinônimo de exclusão
social, a miséria no Canadá seria maior do que na Índia; se
eles condenassem um país ao
desemprego, a taxa de desocupação nos EUA não seria a menor dos últimos 30 anos.
Quanto ao dom do neoliberalismo de excitar "a força do
erotismo, da sexualidade e da
violência", só chamando um
psicanalista para desvendar o
mistério...
O mais lamentável, contudo,
é o desaforo de chamar esse tipo de imprecação raivosa e
cangaço ideológico de "análise
ética". O que se pretende com
isso? A formação dos jovens? A
"reconciliação" alegada pelo
Vaticano ao justificar sua ação
no caso Pinochet? Prefiro crer,
num gesto de caridade cristã,
que nem todos os 396 bispos
brasileiros leram de fato o panfleto que assinam.
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