São Paulo, Quinta-feira, 25 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A "virtus dormitiva" da CNBB

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

O mundo era menor: obediente e fiel às nossas convicções. Houve um tempo, bem me recordo, em que um par de conceitos -as "contradições do capitalismo" e o "imperialismo"- resolvia qualquer parada. Da explosão demográfica ao surto de meningite; da censura à marginalidade social; do trânsito ao acidente nuclear; do milagre ao esgotamento do modelo -o diagnóstico final era sempre o mesmo. Nada que uma dialética criteriosa, rica em nuances e bem apanhada não pudesse resolver. Tudo dependia, é claro, das "devidas mediações".
O economista austríaco Schumpeter captou perfeitamente o espírito daquele tempo ao observar, sobre um terremoto que devastou Tóquio, que pelo menos um grande mérito ele teve: ninguém acusou o capitalismo de ser responsável pelo desastre.
De resto, porém, pouco sobrava. Pouco sobrevivia à fúria de "uma completa sobriedade científica na análise de um estado de coisas objetivo", que é como Lênin caracterizava o (verdadeiro) marxismo.
Tudo se passava como no final de "O Burguês Fidalgo", de Molière. Um estudante vai prestar o exame oral para se tornar doutor em medicina. A banca examinadora, composta por luminares da escolástica, pergunta por que o ópio provoca o sono. O candidato, cheio de confiança, responde: "Porque ele contém um princípio dormitivo".
Resposta impecável, nota máxima. Os doutores ficam impressionadíssimos. A "virtus dormitiva" pode ser qualquer coisa, desde que adormeça o pensamento e embale o sono dogmático. Desde que alcance o enfeitiçamento da inteligência por meio da magia entorpecedora de certas palavras.
Os tempos mudaram. Os antigos demônios foram saindo à francesa do nosso discurso -os franceses, é claro, sempre foram mestres inigualáveis do riscado ideológico- e vão encontrando um merecido repouso na lata de lixo da história das idéias. Embora ainda pipoquem envergonhados aqui e ali, longe vai o tempo em que "contradições do capitalismo" e "imperialismo" serviam de pau dialético para toda obra.
Os rótulos e as fantasias persecutórias mudam, mas os cacoetes intelectuais permanecem. Como alguém que já padeceu do vício, talvez eu tenha uma atenção especial para a coisa. É impossível folhear uma revista ou jornal hoje em dia e não se dar conta de que o escaninho conceitual antes ocupado pelos bodes expiatórios da velha guarda possui agora novos inquilinos.
A operação, no fundo, é simples. Trata-se essencialmente de uma versão light -edulcorada e adaptada aos novos tempos- dos princípios dormitivos que davam conta do recado no mundo pré-queda do Muro de Berlim. Onde se lia "contradições do capitalismo" e "imperialismo", leia-se agora "neoliberalismo" e "globalização".
Que eu saiba, ninguém até aqui conseguiu atribuir a eles tragédias como as provocadas pelo El Niño ou pelo último terremoto colombiano. De resto, porém, não sobra muito. Afinal, do que não foram ainda acusados esses monstruosos demônios doutrinários -"máquinas infernais", no dizer de Pierre Bourdieu- do nosso tempo?
A lista é interminável, e cada leitor, se tiver paciência, pode fazer a sua própria coleção. É fantástico como os exemplos pululam e se multiplicam de forma incontrolável depois que passamos a prestar um rabo de atenção neles. Ocorre que, de tempos em tempos, surgem preciosidades que não podem passar sem registro.
Confesso que quando li, na última "Veja", um resumo crítico do texto-base elaborado pela CNBB para a Campanha da Fraternidade deste ano ("Sem Trabalho... Por quê?") fiquei incrédulo.
Aquilo era demais. Seria possível uma coisa dessas? E a publicação sendo divulgada, ainda por cima, na mesma semana em que, por ironia do destino, ficamos sabendo que o papa João Paulo 2º tentou sorrateiramente pressionar o governo britânico a libertar Pinochet? Resolvi checar.
Estava já acessando o documento dos bispos na Internet quando meu filho, que cursa o ensino fundamental (antigo primeiro grau), chateado por eu estar monopolizando o computador dele (o meu não está na rede), apareceu com a publicação que eu buscava na mão. Vão usá-la como material didático na escola, explicou, reassumindo o controle do computador. De posse do original, comecei a leitura.
O que logo ficou claro é que, por mais inacreditável que pudesse parecer, não havia exagero na matéria de "Veja". Era aquilo mesmo. Da eugenia na China ao confisco de Collor, passando pela proliferação de condomínios fechados, eu já tinha visto o neoliberalismo ser acusado das coisas mais esdrúxulas no passado. A nova cartilha da CNBB foi além.
O neoliberalismo, sustentam os bispos, é um do "fruto do pecado", que tem como resultado uma "cultura da morte" na qual "cada vez mais os espertalhões e os sem ética vão faturando e consumindo mais". É ler para crer.
Parágrafo 121 ("A Astúcia do Sistema Neoliberal"): "Esta cultura coloca no ringue do livre mercado a exacerbação da luta livre entre todos e na qual o mais forte e o mais astuto vence. Esta cultura da luta livre, sem ética e sem moral, sob o império da violência, trabalha muito com o espetáculo do grotesco, a excitação dos desejos mais profundos no ser humano, especialmente a força do erotismo, da sexualidade e da violência".
Diante de passagens como essa (e muitas outras poderiam ser citadas), fica difícil saber onde termina a ignorância e onde começa a má-fé. Pífio na argumentação, o texto lateja ódio, rancor e ressentimento por todos os poros.
Pena que alguns fatos recalcitrantes não tenham sido considerados. Se mercados livres fossem sinônimo de exclusão social, a miséria no Canadá seria maior do que na Índia; se eles condenassem um país ao desemprego, a taxa de desocupação nos EUA não seria a menor dos últimos 30 anos.
Quanto ao dom do neoliberalismo de excitar "a força do erotismo, da sexualidade e da violência", só chamando um psicanalista para desvendar o mistério...
O mais lamentável, contudo, é o desaforo de chamar esse tipo de imprecação raivosa e cangaço ideológico de "análise ética". O que se pretende com isso? A formação dos jovens? A "reconciliação" alegada pelo Vaticano ao justificar sua ação no caso Pinochet? Prefiro crer, num gesto de caridade cristã, que nem todos os 396 bispos brasileiros leram de fato o panfleto que assinam.


Texto Anterior: Ano tem mais retornos
Próximo Texto: Gil ganha Grammy de world music
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.