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CRÍTICA
O teatro dá sinal de vida com "A Boa"
NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba
Uma imagem que se fixa na memória traz a atriz Ana Kutner de
braços abertos diante da luz que
vaza uma janela. A cena é bem desenhada pelo diretor Ivan Feijó,
mas é a firmeza da atriz, sua segurança sendo tão jovem, que marca
na cena. Não se deve exceder em
comparações assim, mas faz lembrar um flagrante de Dina Sfat,
mãe da atriz, segura, irreprimível,
30 anos antes.
Ana Kutner tem um domínio de
palco que é sedutor em si mesmo,
em "A Boa". A certa altura, veste o
colega Milhem Cortaz e levanta um
grande tapete com a agilidade de
um contra-regra. Se precisa carregar o personagem de hipocrisia,
ela que é "A Boa" do título, a caridosa, a atriz se deixa pateticamente
falsa.
Mas é quando o amor pelo mendigo, interpretado por Cortaz, vem
à tona, que Ana Kutner brilha de
fato, com um envolvente fogo romântico.
O enredo não segue um caminho
certo, exigindo contorcionismo
emocional do elenco, mas é aí que
mais se destaca o fascínio juvenil
da atriz, mescla de beleza quebradiça e cruel.
Não surpreende a atuação de
Cortaz, que faz um velho colega de
faculdade de Verônica (Ana Kutner), decaído e alcoólatra. O ator
vem em crescente aprimoramento.
Aqui, o que mais impressiona é como se joga fisicamente no papel,
guiado pelo encenador. Numa
montagem de efeitos simples, mas
impactantes, Ivan Feijó já abre
com toda a cabeça do ator envolta
num plástico sufocante.
Ele mais parece, então, um animal. Mas aos poucos se livra do
plástico, dos movimentos grosseiros, dos farrapos. Aceita a caridade, até se deixar voltar à família,
enriquecer. Em nenhum momento, nem quando sobe à posição de
burguês, Cortaz se deixa levar pelo
realismo. Ao final, olhos esbugalhados, boca de dentes enormes,
joga no rosto de Ana Kutner que
não a ama. E que devia ter sido deixado na rua.
Cena e peça terminam com um
jogo de objetos inesperado e assustador. Ivan Feijó é um diretor atento ao detalhe. Com pouco dinheiro, ergueu uma encenação de grande efeito e que integra toda a peça.
Seus atores surgem cuidadosamente desenhados sem que isso
torne fria a apresentação ou interfira negativamente na ação, pelo
contrário.
Acima de tudo, o que o diretor
conseguiu foi dar forma e força a
uma dramaturgia ainda irregular,
embora já bem mais desenvolvida
do que na peça anterior de Aimar
Labaki, "Vermouth". Em "A Boa",
é como se o dramaturgo não houvesse se preocupado em dar novos
tratamentos a um texto escrito como um desabafo.
As possíveis alegorias teológicas
são apenas arranhadas, para desaparecer sem vínculo com o conflito
do casal. O amor de ambos não dá
maiores sinais até perto do final.
Os personagens, na verdade, não
se desenham claramente, mais parecendo tipos carregados de contra-sensos.
Mas "A Boa" é, com certeza, um
primeiro sinal de um autor de pulso. Não é possível negar que as
atuações de Ana Kutner e Cortaz e
as imagens de Feijó nasceram das
mãos de Aimar Labaki, exposto ele
próprio em seus personagens, ainda que em esboço.
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