São Paulo, Quinta-feira, 25 de Março de 1999
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CRÍTICA
O teatro dá sinal de vida com "A Boa"

NELSON DE SÁ
enviado especial a Curitiba

Uma imagem que se fixa na memória traz a atriz Ana Kutner de braços abertos diante da luz que vaza uma janela. A cena é bem desenhada pelo diretor Ivan Feijó, mas é a firmeza da atriz, sua segurança sendo tão jovem, que marca na cena. Não se deve exceder em comparações assim, mas faz lembrar um flagrante de Dina Sfat, mãe da atriz, segura, irreprimível, 30 anos antes.
Ana Kutner tem um domínio de palco que é sedutor em si mesmo, em "A Boa". A certa altura, veste o colega Milhem Cortaz e levanta um grande tapete com a agilidade de um contra-regra. Se precisa carregar o personagem de hipocrisia, ela que é "A Boa" do título, a caridosa, a atriz se deixa pateticamente falsa.
Mas é quando o amor pelo mendigo, interpretado por Cortaz, vem à tona, que Ana Kutner brilha de fato, com um envolvente fogo romântico.
O enredo não segue um caminho certo, exigindo contorcionismo emocional do elenco, mas é aí que mais se destaca o fascínio juvenil da atriz, mescla de beleza quebradiça e cruel.
Não surpreende a atuação de Cortaz, que faz um velho colega de faculdade de Verônica (Ana Kutner), decaído e alcoólatra. O ator vem em crescente aprimoramento. Aqui, o que mais impressiona é como se joga fisicamente no papel, guiado pelo encenador. Numa montagem de efeitos simples, mas impactantes, Ivan Feijó já abre com toda a cabeça do ator envolta num plástico sufocante.
Ele mais parece, então, um animal. Mas aos poucos se livra do plástico, dos movimentos grosseiros, dos farrapos. Aceita a caridade, até se deixar voltar à família, enriquecer. Em nenhum momento, nem quando sobe à posição de burguês, Cortaz se deixa levar pelo realismo. Ao final, olhos esbugalhados, boca de dentes enormes, joga no rosto de Ana Kutner que não a ama. E que devia ter sido deixado na rua.
Cena e peça terminam com um jogo de objetos inesperado e assustador. Ivan Feijó é um diretor atento ao detalhe. Com pouco dinheiro, ergueu uma encenação de grande efeito e que integra toda a peça. Seus atores surgem cuidadosamente desenhados sem que isso torne fria a apresentação ou interfira negativamente na ação, pelo contrário.
Acima de tudo, o que o diretor conseguiu foi dar forma e força a uma dramaturgia ainda irregular, embora já bem mais desenvolvida do que na peça anterior de Aimar Labaki, "Vermouth". Em "A Boa", é como se o dramaturgo não houvesse se preocupado em dar novos tratamentos a um texto escrito como um desabafo.
As possíveis alegorias teológicas são apenas arranhadas, para desaparecer sem vínculo com o conflito do casal. O amor de ambos não dá maiores sinais até perto do final. Os personagens, na verdade, não se desenham claramente, mais parecendo tipos carregados de contra-sensos.
Mas "A Boa" é, com certeza, um primeiro sinal de um autor de pulso. Não é possível negar que as atuações de Ana Kutner e Cortaz e as imagens de Feijó nasceram das mãos de Aimar Labaki, exposto ele próprio em seus personagens, ainda que em esboço.


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