São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

NELSON ASCHER

Bento 16

A recente elevação do teólogo alemão Joseph Ratzinger ao papado, embora prevista e quase assegurada de antemão, nem por isso é menos significativa. Ela implica, em primeiro lugar, que seu antecessor, o polonês Karol Wojtyla, coroou um longo e bem-sucedido reinado "fazendo" seu sucessor.
A história do trono de são Pedro é marcada tanto por continuidades mornas como por descontinuidades radicais. Que uma gestão vigorosa como a de João Paulo 2º se perpetue na de Bento 16, que, ao que tudo indica, não será menos ativa e dinâmica, aponta para uma abertura da Igreja Católica, se bem que não se trate do tipo de abertura que muitos gostariam de ver implementada.
A abertura em questão é a de uma instituição cujos conflitos internos não raro a paralisaram diante dos desafios do mundo exterior. O Vaticano, quando consegue desviar suas energias das intrigas de bastidores para a ação política no quadro mais amplo, é uma organização cujo poder e influência cada qual menospreza por sua própria conta e risco.
Stálin, ao lhe perguntarem certa vez sobre a reação do Vaticano a alguma medida que tomara, respondeu famosamente com outra pergunta: "De quantas divisões (militares) dispõe o papa?". Três ou quatro décadas mais tarde, o império que o "pai dos povos" construíra, com centenas de divisões, sobre as ossadas de dezenas de milhões, ruiria "não com um estrondo, mas com uma lamúria" (T.S. Eliot), desabando sob o próprio peso insustentável. É provável que isso teria ocorrido cedo ou tarde. No entanto, o empurrãozinho dado por um polonês apressou o processo, algo que, se soa indiferente numa perspectiva longa, mudou a vida cotidiana de povos inteiros.
A continuidade implícita na escolha do principal conselheiro de João Paulo 2º significa, em segundo lugar, que o papado seguirá imbuído de uma consciência clara de seu papel nas encruzilhadas contemporâneas, uma consciência visceralmente informada pelo suicídio que a civilização européia tentou e praticamente chegou a cometer durante a primeira metade do século passado.
Se as raízes de Wojtyla estavam no pedaço de terra mais arrasado pela Segunda Guerra, as de Ratzinger se encontram no coração mesmo da besta-fera. Ambos os pontífices testemunharam tão de perto quanto humanamente possível o crescimento e o desdobrar-se da serpente autodestrutiva ocidental.
O Ocidente como tal não passa de um conceito meramente geográfico: é o lugar onde o sol se põe. Para a igreja, todavia, Ocidente é o eufemismo culturalmente correto para um termo que, malgrado ter caído em desuso, nem assim deixa de designar uma entidade cuja existência pode ser empiricamente verificada: a Cristandade.
Não é necessário retomar a tese formulada por Samuel Huntington sobre o "choque de culturas" para atestar que é o legado formativo judaico-cristão que, quando não contrapõe, seguramente distingue o Ocidente do restante de planeta. Esse fato óbvio e também negado mais freqüentemente do que Pedro negou Cristo não é de forma nenhuma ignorado pelos partidários aguerridos das demais culturas. Não é nem à toa nem por ignorância semântica que Osama bin Laden e Ayman Al Zawahiri se referem a seus inimigos menos como secularistas modernos, imperialistas ateus ou agnósticos, sionistas etc. do que como cristãos (ou cruzados) e judeus. Eles sabem do que estão falando.
O cerne da política, dizem alguns teóricos, consiste em discernir e reconhecer o inimigo. Os bem-pensantes hoje em dia reagem alergicamente à menor evocação dessa palavra que, de acordo com eles, já deveria ter sido banida de todos os léxicos e glossários. A acreditarmos neles, os conflitos resultam sempre e necessariamente de mal-entendidos, não há na face da Terra interesses contraditórios e inconciliáveis, todos os seres humanos aspiram às mesmas coisas e não existe nada melhor do que o diálogo para afastar a ameaça da violência e da guerra. Uma vez que façamos nossa autocrítica e ouçamos atenta e honestamente às justas reclamações e legítimas reivindicações do "outro", vai se instaurar o império da paz perpétua e da harmonia terrestre.
Poucas fantasias poderiam estar mais distantes da sabedoria institucional que, em 20 séculos, a igreja acumulou. Quem deseje absorver osmoticamente uma visão desencantada, mas realista, da natureza humana, ou seja, quem quer que tenha se cansado das fantasias terapêuticas que, travestidas com o auxílio de jargões opacos, passam por visões adultas de mundo, tem muito a aprender não tanto com o que a igreja fala como com seu modo de agir.
Foi um dos célebres reacionários britânicos, Chesterton ou Hilaire Belloc, que, parafraseando a conclusão de um dos contos do "Decamerão", de Bocaccio, afirmou que a prova definitiva da divindade da igreja romana advinha de ela ter sobrevivido tanto tempo a seus próprios erros e equívocos. Os fiéis decerto acharão outras, mas uma sobrevivência tão longa patenteia, se mais nada, uma capacidade arraigada de identificar os perigos verdadeiros.
Ratzinger, ou melhor, Bento 16 demonstrou mais de uma vez que possui uma visão clara e um instinto certeiro. Ao arquitetar a reconciliação entre catolicismo e judaísmo, ele ajudou sua organização a se livrar do mais milenar de seus pesos mortos. Suas declarações a respeito do jihadismo internacional, que não buscam agradar a gregos e a troianos, são igualmente inequívocas. Num tempo de renascimento religioso e de inevitáveis confrontos interconfessionais, o novo papa, despido de ilusões reconfortantes, parece disposto a preparar sua fé para as batalhas que virão.


Texto Anterior: Protesto: Campanha quer desligar TVs do planeta
Próximo Texto: Artes plásticas: Desenhos revelam metamorfoses de Cildo Meireles
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.