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NELSON ASCHER
Bento 16
A recente elevação do teólogo alemão Joseph Ratzinger ao papado, embora prevista e
quase assegurada de antemão,
nem por isso é menos significativa. Ela implica, em primeiro lugar, que seu antecessor, o polonês
Karol Wojtyla, coroou um longo e
bem-sucedido reinado "fazendo"
seu sucessor.
A história do trono de são Pedro
é marcada tanto por continuidades mornas como por descontinuidades radicais. Que uma gestão vigorosa como a de João Paulo 2º se perpetue na de Bento 16,
que, ao que tudo indica, não será
menos ativa e dinâmica, aponta
para uma abertura da Igreja Católica, se bem que não se trate do
tipo de abertura que muitos gostariam de ver implementada.
A abertura em questão é a de
uma instituição cujos conflitos internos não raro a paralisaram
diante dos desafios do mundo exterior. O Vaticano, quando consegue desviar suas energias das intrigas de bastidores para a ação
política no quadro mais amplo, é
uma organização cujo poder e influência cada qual menospreza
por sua própria conta e risco.
Stálin, ao lhe perguntarem certa vez sobre a reação do Vaticano
a alguma medida que tomara,
respondeu famosamente com outra pergunta: "De quantas divisões (militares) dispõe o papa?".
Três ou quatro décadas mais tarde, o império que o "pai dos povos" construíra, com centenas de
divisões, sobre as ossadas de dezenas de milhões, ruiria "não com
um estrondo, mas com uma lamúria" (T.S. Eliot), desabando
sob o próprio peso insustentável.
É provável que isso teria ocorrido
cedo ou tarde. No entanto, o empurrãozinho dado por um polonês apressou o processo, algo que,
se soa indiferente numa perspectiva longa, mudou a vida cotidiana de povos inteiros.
A continuidade implícita na escolha do principal conselheiro de
João Paulo 2º significa, em segundo lugar, que o papado seguirá
imbuído de uma consciência clara de seu papel nas encruzilhadas
contemporâneas, uma consciência visceralmente informada pelo
suicídio que a civilização européia tentou e praticamente chegou a cometer durante a primeira
metade do século passado.
Se as raízes de Wojtyla estavam
no pedaço de terra mais arrasado
pela Segunda Guerra, as de Ratzinger se encontram no coração
mesmo da besta-fera. Ambos os
pontífices testemunharam tão de
perto quanto humanamente possível o crescimento e o desdobrar-se da serpente autodestrutiva ocidental.
O Ocidente como tal não passa
de um conceito meramente geográfico: é o lugar onde o sol se põe.
Para a igreja, todavia, Ocidente é
o eufemismo culturalmente correto para um termo que, malgrado ter caído em desuso, nem assim deixa de designar uma entidade cuja existência pode ser empiricamente verificada: a Cristandade.
Não é necessário retomar a tese
formulada por Samuel Huntington sobre o "choque de culturas"
para atestar que é o legado formativo judaico-cristão que,
quando não contrapõe, seguramente distingue o Ocidente do
restante de planeta. Esse fato óbvio e também negado mais freqüentemente do que Pedro negou
Cristo não é de forma nenhuma
ignorado pelos partidários aguerridos das demais culturas. Não é
nem à toa nem por ignorância semântica que Osama bin Laden e
Ayman Al Zawahiri se referem a
seus inimigos menos como secularistas modernos, imperialistas
ateus ou agnósticos, sionistas etc.
do que como cristãos (ou cruzados) e judeus. Eles sabem do que
estão falando.
O cerne da política, dizem alguns teóricos, consiste em discernir e reconhecer o inimigo. Os
bem-pensantes hoje em dia reagem alergicamente à menor evocação dessa palavra que, de acordo com eles, já deveria ter sido banida de todos os léxicos e glossários. A acreditarmos neles, os conflitos resultam sempre e necessariamente de mal-entendidos, não
há na face da Terra interesses
contraditórios e inconciliáveis, todos os seres humanos aspiram às
mesmas coisas e não existe nada
melhor do que o diálogo para
afastar a ameaça da violência e
da guerra. Uma vez que façamos
nossa autocrítica e ouçamos atenta e honestamente às justas reclamações e legítimas reivindicações
do "outro", vai se instaurar o império da paz perpétua e da harmonia terrestre.
Poucas fantasias poderiam estar mais distantes da sabedoria
institucional que, em 20 séculos, a
igreja acumulou. Quem deseje
absorver osmoticamente uma visão desencantada, mas realista,
da natureza humana, ou seja,
quem quer que tenha se cansado
das fantasias terapêuticas que,
travestidas com o auxílio de jargões opacos, passam por visões
adultas de mundo, tem muito a
aprender não tanto com o que a
igreja fala como com seu modo de
agir.
Foi um dos célebres reacionários britânicos, Chesterton ou Hilaire Belloc, que, parafraseando a
conclusão de um dos contos do
"Decamerão", de Bocaccio, afirmou que a prova definitiva da divindade da igreja romana advinha de ela ter sobrevivido tanto
tempo a seus próprios erros e
equívocos. Os fiéis decerto acharão outras, mas uma sobrevivência tão longa patenteia, se mais
nada, uma capacidade arraigada
de identificar os perigos verdadeiros.
Ratzinger, ou melhor, Bento 16
demonstrou mais de uma vez que
possui uma visão clara e um instinto certeiro. Ao arquitetar a reconciliação entre catolicismo e judaísmo, ele ajudou sua organização a se livrar do mais milenar de
seus pesos mortos. Suas declarações a respeito do jihadismo internacional, que não buscam agradar a gregos e a troianos, são
igualmente inequívocas. Num
tempo de renascimento religioso e
de inevitáveis confrontos interconfessionais, o novo papa, despido de ilusões reconfortantes, parece disposto a preparar sua fé para as batalhas que virão.
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