São Paulo, terça-feira, 25 de abril de 2006

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BERNARDO CARVALHO

Eles não podem fazer mais nada

Em 1994, os chineses iniciaram a construção da maior hidrelétrica do mundo e o maior projeto de engenharia civil no país desde a Grande Muralha. Prevista para estar em pleno funcionamento até 2009, a barragem das Três Gargantas, no rio Yangtze (Chang Jiang, ou Rio Comprido, para os chineses), tem como principal objetivo suprir a demanda de energia de uma economia cujo crescimento é estonteante em todos os sentidos.
De quebra, a represa das águas do Yangtze, que terá mais de 500 quilômetros de diâmetro (mais do que a distância entre Rio e São Paulo), deve pôr um fim às enchentes que por milênios assombraram as populações ao longo do terceiro maior rio do mundo e o mais perigoso de todos. Mais de 300 mil pessoas morreram em conseqüências das enchentes do Yangtze durante o século 20. Não será muito animador, entretanto, saber que das dezenas de milhares de barragens construídas na China desde 1949, 3.000 se romperam até 1980. Hoje, um terço da população chinesa (cerca de 1,3 bilhão de pessoas, responsável por 40% da produção industrial do país) vive nas margens do Yangtze.
Em contrapartida a todas as promessas do desenvolvimento, o projeto das Três Gargantas já causou uma das maiores catástrofes ambientais, sociais e culturais da história da China. Dois milhões de pessoas foram obrigadas a deixar centenas de cidades e milhares de vilarejos prestes a submergir nas águas poluídas do Yangtze. A fauna e sítios históricos de até 3.500 anos também estão desaparecendo. A represa, por conta de todo o esgoto, dos detritos e do lixo industrial nela despejados, deverá se tornar em breve o maior reservatório tóxico do planeta.
Tudo isso para dizer que fica em cartaz até 16 de julho, no Asian Art Museum, de San Francisco, uma exposição maravilhosa de um dos expoentes da pintura chinesa contemporânea, Liu Xiaodong, 43. "O Projeto das Três Gargantas" reúne em uma única sala dois painéis de proporções monumentais e mais dois ou três trabalhos que o artista pintou no alto de um prédio em Fengjie, uma das cidades abandonadas à força, à espera de ser engolida pelas águas das Três Gargantas, e em cujas ruínas restaram somente as prostitutas e os criminosos.
Liu Xiaodong é um pintor formado na tradição do realismo socialista, mas que viveu a ruptura do chamado movimento de 85 (marcado pela influência da arte moderna ocidental), as manifestações estudantis de 89 e o massacre da praça Tian An Men. É essa experiência que faz uma de suas frases, pinçada como epígrafe do catálogo da exposição, soar tão estranha: "Só pinto o que um operário pode ver".
Há uma contradição de base no populismo da afirmação. Para que pintar o que os operários já podiam ver antes da pintura (e sem precisar dela)? Seria simples ignorar a contradição se por trás dela não houvesse um grande artista. O mistério é saber por que Liu Xiaodong insiste em dizer um lugar-comum desses, que se adequaria com perfeição aos preceitos do realismo socialista no qual ele se formou, mas não aos seus quadros, que fazem ver justamente o que não se podia ver antes deles, por mais prosaicas que pareçam as cenas neles representadas.
Por mais que se reconheçam vestígios do realismo socialista nas telas de Liu Xiaodong, alguma coisa vem perturbar esse socialismo e esse realismo. Podem ser os operários jogando cartas, de cuecas, no telhado do prédio diante da represa das Três Gargantas; ou dois operários sem camisa, um de pé nos ombros do outro, segurando um poste, enquanto duas galinhas jazem no chão, mortas; ou um ciclista atropelado à noite, caído no meio da estrada. São quadros que representam o sinistro recalcado sob a aparente tranqüilidade das cenas mais banais e familiares.
No centro do painel principal da exposição de San Francisco, dois homens com as mãos nos bolsos, separados por alguns metros e de costas para o espectador, observam do alto de uma das margens a massa de água cinzenta da represa das Três Gargantas. Contemplam imóveis um mundo em extinção. À esquerda, três figuras infantis sinistras, armadas com uma pistola e um cutelo, vêm subindo a colina na direção do espectador. À direita, outros seis personagens também parecem ter interrompido o que estavam fazendo para olhar para o pintor/ espectador. Alguns lembram as figuras de James Ensor.
A perspectiva é perturbadora. O centro do quadro é um vórtice. Lá embaixo, à esquerda, vê-se a imensa barragem em construção, com guindastes e o que resta de uma cidade. A perspectiva suga e paralisa o olhar, pondo o espectador num lugar de desequilíbrio e de vertigem. De onde estamos, tudo parece prestes a desabar, já não resta nada a fazer. O mundo está lá, mas o observador está a um passo de despencar no abismo da paisagem. Basta um passo em falso.
Para desequilibrar ainda mais a noção de espaço, dois patos em primeiro plano fazem evoluções no ar, num estranho vôo, um deles aparentemente abatido por um tiro. A perspectiva foi transformada em voragem.
A China é a representação máxima das contradições do capitalismo contemporâneo: todos sabem que os efeitos do seu crescimento, do qual parece depender a sobrevivência da economia mundial, serão devastadores. Os observadores de Liu Xiaodong contemplam, fascinados, impotentes e impassíveis como nós, a destruição do mundo tal como o conhecemos.


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