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BERNARDO CARVALHO
Eles não podem fazer mais nada
Em 1994, os chineses iniciaram
a construção da maior hidrelétrica do mundo e o maior projeto de engenharia civil no país desde a Grande Muralha. Prevista
para estar em pleno funcionamento até 2009, a barragem das
Três Gargantas, no rio Yangtze
(Chang Jiang, ou Rio Comprido,
para os chineses), tem como principal objetivo suprir a demanda
de energia de uma economia cujo
crescimento é estonteante em todos os sentidos.
De quebra, a represa das águas
do Yangtze, que terá mais de 500
quilômetros de diâmetro (mais
do que a distância entre Rio e São
Paulo), deve pôr um fim às enchentes que por milênios assombraram as populações ao longo
do terceiro maior rio do mundo e
o mais perigoso de todos. Mais de
300 mil pessoas morreram em
conseqüências das enchentes do
Yangtze durante o século 20. Não
será muito animador, entretanto,
saber que das dezenas de milhares de barragens construídas na
China desde 1949, 3.000 se romperam até 1980. Hoje, um terço da
população chinesa (cerca de 1,3
bilhão de pessoas, responsável por
40% da produção industrial do
país) vive nas margens do Yangtze.
Em contrapartida a todas as
promessas do desenvolvimento, o
projeto das Três Gargantas já
causou uma das maiores catástrofes ambientais, sociais e culturais da história da China. Dois
milhões de pessoas foram obrigadas a deixar centenas de cidades e
milhares de vilarejos prestes a
submergir nas águas poluídas do
Yangtze. A fauna e sítios históricos de até 3.500 anos também estão desaparecendo. A represa, por
conta de todo o esgoto, dos detritos e do lixo industrial nela despejados, deverá se tornar em breve o
maior reservatório tóxico do planeta.
Tudo isso para dizer que fica em
cartaz até 16 de julho, no Asian
Art Museum, de San Francisco,
uma exposição maravilhosa de
um dos expoentes da pintura chinesa contemporânea, Liu Xiaodong, 43. "O Projeto das Três Gargantas" reúne em uma única sala
dois painéis de proporções monumentais e mais dois ou três trabalhos que o artista pintou no alto
de um prédio em Fengjie, uma
das cidades abandonadas à força,
à espera de ser engolida pelas
águas das Três Gargantas, e em
cujas ruínas restaram somente as
prostitutas e os criminosos.
Liu Xiaodong é um pintor formado na tradição do realismo socialista, mas que viveu a ruptura
do chamado movimento de 85
(marcado pela influência da arte
moderna ocidental), as manifestações estudantis de 89 e o massacre da praça Tian An Men. É essa
experiência que faz uma de suas
frases, pinçada como epígrafe do
catálogo da exposição, soar tão
estranha: "Só pinto o que um operário pode ver".
Há uma contradição de base no
populismo da afirmação. Para
que pintar o que os operários já
podiam ver antes da pintura (e
sem precisar dela)? Seria simples
ignorar a contradição se por trás
dela não houvesse um grande artista. O mistério é saber por que
Liu Xiaodong insiste em dizer um
lugar-comum desses, que se adequaria com perfeição aos preceitos do realismo socialista no qual
ele se formou, mas não aos seus
quadros, que fazem ver justamente o que não se podia ver antes deles, por mais prosaicas que pareçam as cenas neles representadas.
Por mais que se reconheçam
vestígios do realismo socialista
nas telas de Liu Xiaodong, alguma coisa vem perturbar esse socialismo e esse realismo. Podem
ser os operários jogando cartas,
de cuecas, no telhado do prédio
diante da represa das Três Gargantas; ou dois operários sem camisa, um de pé nos ombros do outro, segurando um poste, enquanto duas galinhas jazem no chão,
mortas; ou um ciclista atropelado
à noite, caído no meio da estrada.
São quadros que representam o
sinistro recalcado sob a aparente
tranqüilidade das cenas mais banais e familiares.
No centro do painel principal
da exposição de San Francisco,
dois homens com as mãos nos
bolsos, separados por alguns metros e de costas para o espectador,
observam do alto de uma das
margens a massa de água cinzenta da represa das Três Gargantas.
Contemplam imóveis um mundo
em extinção. À esquerda, três figuras infantis sinistras, armadas
com uma pistola e um cutelo, vêm
subindo a colina na direção do espectador. À direita, outros seis
personagens também parecem ter
interrompido o que estavam fazendo para olhar para o pintor/
espectador. Alguns lembram as figuras de James Ensor.
A perspectiva é perturbadora. O
centro do quadro é um vórtice. Lá
embaixo, à esquerda, vê-se a
imensa barragem em construção,
com guindastes e o que resta de
uma cidade. A perspectiva suga e
paralisa o olhar, pondo o espectador num lugar de desequilíbrio e
de vertigem. De onde estamos, tudo parece prestes a desabar, já
não resta nada a fazer. O mundo
está lá, mas o observador está a
um passo de despencar no abismo
da paisagem. Basta um passo em
falso.
Para desequilibrar ainda mais
a noção de espaço, dois patos em
primeiro plano fazem evoluções
no ar, num estranho vôo, um deles aparentemente abatido por
um tiro. A perspectiva foi transformada em voragem.
A China é a representação máxima das contradições do capitalismo contemporâneo: todos sabem que os efeitos do seu crescimento, do qual parece depender a
sobrevivência da economia mundial, serão devastadores. Os observadores de Liu Xiaodong contemplam, fascinados, impotentes
e impassíveis como nós, a destruição do mundo tal como o conhecemos.
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