São Paulo, sábado, 25 de abril de 2009

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RODAPÉ LITERÁRIO

Dupla exposição do Brasil


Milton Hatoum e Bernardo Carvalho trazem olhar crítico ao global e visão distanciada da experiência local
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

À PRIMEIRA vista, aproximar os livros mais recentes de Milton Hatoum e Bernardo Carvalho não é evidente. Soa como idiossincrasia pura, esquisitice de leitor, que teima em agrupar autores muito diversos, próximos apenas no respeito de crítica e público por suas obras sólidas, ainda em construção.
E, no entanto, deslocamentos espaciais violentos, na base das tramas e do simbolismo explorado pelos dois, despertam, ao mesmo tempo, um olhar brasileiro e crítico para um mundo globalizado e uma perspectiva mundializada e distanciada da experiência local. Os contos de "A Cidade Ilhada", de Hatoum, têm na origem esta implantação forçada e abrupta da civilização europeia no coração da floresta, vigorosa e pulsante por um breve intervalo, cujos vestígios (na memória e na paisagem) ainda se deixam mapear. O Festival Amazonas de Ópera continua, hoje, tratando Offenbach como um nativo, "A Vida Parisiense" de outro tempo e a de uma Manaus passada seguem, nas lembranças locais, sendo imagens sobrepostas.
As narrativas breves recolhidas em "A Cidade Ilhada" trazem personagens que, herança ou ensaio de outros livros de Hatoum, se fascinam pelo fascínio que a Amazônia, porto de imigrantes, mito edênico e miragem ecológica, exerceu e exerce sobre o olhar estrangeiro. Na mão dupla, em Berkeley ou Madri, o narrador de Hatoum nunca se separa da formação amazônica.
Para ele, o "inferno verde" não tem nada de inteireza e eternidade de ideia, ameaçadora ou messiânica, o mito se adensando em história e, por sua vez, se desfazendo em cicatrizes várias (os poetas de província e seu idílio francês, a opulência transitória dos hotéis e teatros locais, a pobreza que se seguiu).
Em "O Filho da Mãe", Bernardo Carvalho, por sua vez, desloca o narrador a um cenário remoto para tratar experiências humanas recorrentes: os efeitos devastadores da guerra (no caso, o conflito separatista da Tchetchênia) e de um mundo político em dissolução sobre uma relação universal, a que opõe e liga mães e filhos. Longe de explorá-la literariamente, o narrador apaga sua condição de estrangeiro, imerso numa familiaridade artificial, habilmente construída, de um olhar aparentemente desterritorializado.
E através dele que surge, mais que detalhe numa história repleta de reviravoltas e reconhecimentos, uma imagem oposta e complementar da Amazônia de Hatoum, utilitária e instrumental, a de uma biodiversidade cinicamente predada. Entre a visão afetiva e a distanciada, ganha o leitor, destinatário de um retrato do Brasil bem além do três por quatro.


A CIDADE ILHADA

Autor: Milton Hatoum
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 31 (128 págs.)

O FILHO DA MÃE

Autor: Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 39 (201 págs.)
Avaliação: ótimo (para os dois)



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