São Paulo, sábado, 25 de abril de 1998

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O luxo do lixo

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"Seus bundas-moles! Vocês não têm uma unha do talento desse homem!" A frase de Luís Sérgio Person, dirigida aos alunos da Escola Superior de Cinema, que acabavam de humilhar José Mojica Marins num debate, resume a conturbada trajetória do diretor e ator, criador do Zé do Caixão.
Corriam os anos 60, mas Mojica já começava a merecer o título da biografia que André Barcinski e Ivan Finotti lançam: "Maldito".
Zé do Caixão acabava de explodir, com "À Meia-Noite Levarei Sua Alma" (64). Lá estava o coveiro, meio analfabeto, meio nietzschiano, instaurando um inferno à brasileira: improvisado, feito com trucagens primitivas. Mas dotado de uma compreensão visceral do cinema. E, para completar, um arrasador sucesso de público.
Um gênio ou uma besta? As opiniões dividiram-se. Barcinski e Finotti narram a cena ocorrida em um cinema do Rio. Havia um tumulto na sala. O lanterninha saiu desesperado: "Tem um maluco gritando lá dentro". Era um cara de cabelos desgrenhados, camisa aberta, berrando: "Puta que pariu, esse cara é um gênio".
O maluco da platéia era Glauber Rocha, que desde então integrou-se ao seleto grupo de defensores de Mojica: além de Person, Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e o crítico Salvyano Cavalcanti, entre outros.
Apesar de encontrar defensores de peso, havia um problema: como integrar Mojica a um cinema então dominado pelas preocupações sociais do cinema novo?
Talvez a melhor análise da situação tenha sido feita por Cavalcanti no extinto "Correio da Manhã": "(...) analistas desapaixonados irão reconhecer: a eclosão do cinema de Marins representa fato novo, da mesma dimensão que hoje se tem como pacífico a respeito de Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em sua brasilidade e na abordagem formal -e durante tantos anos subestimado pela crítica, então preocuapada em discutir as teorias alienígenas, enquanto descriam (...) das coisas brasileiras".
A questão de como inserir Mojica numa tradição é, em parte, o assunto desta biografia. O que fazer com um fulano criado na Vila Anastácio, que nem escrever um roteiro conseguia? No mais, um possível trambiqueiro, dono de uma suspeita escola de interpretação? Isso é gênio que se apresente?
Barcinski e Finotti demonstram que não existe incompatibilidade entre a inteligência, a capacidade de compreender o cinema e apreender o Brasil e tudo o mais.
Não existe incompatibilidade nem mesmo entre suas virtudes artísticas e a capacidade autodestrutiva, que acabou por levá-lo quase à miséria justamente nos momentos em que, com o sucesso, tinha tudo para enriquecer.
Então, fez de tudo: TV, quadrinhos, marchas carnavalescas -sem falar dos filmes e da escola de atores. Enfiava os pés pelas mãos e saía do negócio com mãos abanando, um processo nas costas ou a fama de picareta reforçada.
Não era um homem confiável, sobretudo para a censura, com quem teve relações tensas, a ponto de uma censora afirmar, em seu parecer, que, "se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir a prisão do produtor".
O censor Augusto da Costa -beque da seleção brasileira de 1950- tomou inclusive a liberdade de reescrever a cena final de "Esta Noite Encarnarei no Teu Cadáver". Ali, quando Zé do Caixão afundava em um lago, bradando "Eu não creio!", Mojica foi obrigado a redublar a cena, acrescida agora de uma declaração de fé: "Sim, Deus é a verdade!" etc.
Foi a censura, desde que o regime militar endureceu, com o AI-5, que acabou decretando a morte de Zé do Caixão e a decadência de Mojica, então forçado a fazer filmes de encomenda.
Zé só ressurgiria nos anos 90. Enquanto Mojica batalhava no Brasil, inutilmente, para filmar, Zé do Caixão emplacava nos EUA, com o nome de Coffin Joe. Essa é a sina do aventureiro.




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