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O luxo do lixo
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
"Seus bundas-moles! Vocês não
têm uma unha do talento desse
homem!" A frase de Luís Sérgio
Person, dirigida aos alunos da Escola Superior de Cinema, que acabavam de humilhar José Mojica
Marins num debate, resume a
conturbada trajetória do diretor e
ator, criador do Zé do Caixão.
Corriam os anos 60, mas Mojica
já começava a merecer o título da
biografia que André Barcinski e
Ivan Finotti lançam: "Maldito".
Zé do Caixão acabava de explodir, com "À Meia-Noite Levarei
Sua Alma" (64). Lá estava o coveiro, meio analfabeto, meio nietzschiano, instaurando um inferno à
brasileira: improvisado, feito com
trucagens primitivas. Mas dotado
de uma compreensão visceral do
cinema. E, para completar, um arrasador sucesso de público.
Um gênio ou uma besta? As opiniões dividiram-se. Barcinski e Finotti narram a cena ocorrida em
um cinema do Rio. Havia um tumulto na sala. O lanterninha saiu
desesperado: "Tem um maluco
gritando lá dentro". Era um cara
de cabelos desgrenhados, camisa
aberta, berrando: "Puta que pariu, esse cara é um gênio".
O maluco da platéia era Glauber
Rocha, que desde então integrou-se ao seleto grupo de defensores de Mojica: além de Person,
Roberto Santos, Rogério Sganzerla, Carlos Reichenbach e o crítico
Salvyano Cavalcanti, entre outros.
Apesar de encontrar defensores
de peso, havia um problema: como integrar Mojica a um cinema
então dominado pelas preocupações sociais do cinema novo?
Talvez a melhor análise da situação tenha sido feita por Cavalcanti
no extinto "Correio da Manhã":
"(...) analistas desapaixonados
irão reconhecer: a eclosão do cinema de Marins representa fato novo, da mesma dimensão que hoje
se tem como pacífico a respeito de
Humberto Mauro, cineasta também puro, intuitivo, genuíno em
sua brasilidade e na abordagem
formal -e durante tantos anos
subestimado pela crítica, então
preocuapada em discutir as teorias
alienígenas, enquanto descriam
(...) das coisas brasileiras".
A questão de como inserir Mojica numa tradição é, em parte, o
assunto desta biografia. O que fazer com um fulano criado na Vila
Anastácio, que nem escrever um
roteiro conseguia? No mais, um
possível trambiqueiro, dono de
uma suspeita escola de interpretação? Isso é gênio que se apresente?
Barcinski e Finotti demonstram
que não existe incompatibilidade
entre a inteligência, a capacidade
de compreender o cinema e
apreender o Brasil e tudo o mais.
Não existe incompatibilidade
nem mesmo entre suas virtudes
artísticas e a capacidade autodestrutiva, que acabou por levá-lo
quase à miséria justamente nos
momentos em que, com o sucesso, tinha tudo para enriquecer.
Então, fez de tudo: TV, quadrinhos, marchas carnavalescas
-sem falar dos filmes e da escola
de atores. Enfiava os pés pelas
mãos e saía do negócio com mãos
abanando, um processo nas costas
ou a fama de picareta reforçada.
Não era um homem confiável,
sobretudo para a censura, com
quem teve relações tensas, a ponto
de uma censora afirmar, em seu
parecer, que, "se não fugisse à minha alçada, seria o caso de sugerir
a prisão do produtor".
O censor Augusto da Costa
-beque da seleção brasileira de
1950- tomou inclusive a liberdade de reescrever a cena final de
"Esta Noite Encarnarei no Teu
Cadáver". Ali, quando Zé do Caixão afundava em um lago, bradando "Eu não creio!", Mojica foi
obrigado a redublar a cena, acrescida agora de uma declaração de
fé: "Sim, Deus é a verdade!" etc.
Foi a censura, desde que o regime militar endureceu, com o AI-5,
que acabou decretando a morte de
Zé do Caixão e a decadência de
Mojica, então forçado a fazer filmes de encomenda.
Zé só ressurgiria nos anos 90.
Enquanto Mojica batalhava no
Brasil, inutilmente, para filmar,
Zé do Caixão emplacava nos EUA,
com o nome de Coffin Joe. Essa é a
sina do aventureiro.
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