São Paulo, sábado, 25 de abril de 1998

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Tragédias em Abril, o coro

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Agosto, mês do desgosto, reabilitou-se às custas de duas tragédias em Abril. Fulminantes e perversos, num lapso de dois dias os Fados carregaram dois companheiros de trincheira com tal ímpeto e precisão que fica difícil definir se são dramas separados ou atos de um mesmo e maligno remoinho.
Foi em 1985 que o quarto mês desbancou o oitavo no calendário dos agouros, no exato momento em que tomaria posse o primeiro presidente civil depois de 21 de regime militar. Coincidências e sincronismos retiram a impressão de casualidade, dão um toque de causalidade e determinismo. Sérgio Motta foi enterrado um dia antes do 13º aniversário da morte de Tancredo Neves, Luís Eduardo Magalhães, foi abatido no mesmo dia que o estadista mineiro.
Homens do diálogo e do entendimento, tanto deram de si que não conseguiram acertar-se com os prazos e limites. Tombaram prematuros, cada um na sua faixa etária.
Aristóteles, cerca de 335 a. C., foi o primeiro a preocupar-se em definir o que é uma tragédia sob o ponto de vista literário. Mas os gregos já conheciam o gênero 200 anos antes, a partir dos relatos teatrais de Ésquilo e, posteriormente, de Sófocles e Eurípides. A formulação aristotélica transcende ao palco, arena ou anfiteatro. É quase semântica ao diferenciar a tragédia de uma catástrofe, atrocidade, infortúnio ou final infeliz.
A tragédia, para ele, pressupõe uma sucessão de eventos encadeados, organizados de forma que produzam um sentido, por mais inesperado que seja, e, em seguida, a revelação de sua extensão. Mutação violenta produzida exclusivamente pela ação humana por meio de de impulsos, erros de juízo, paixões.
A tragédia, vista pelos românticos e modernos, decorre da presunção humana de onipotência e onisciência. Colisão de vontades, conflito entre o livre-arbítrio e o arbítrio de outras forças chamadas Destino. Falha de percepção sobre a fragilidade de nossa existência e nossos poderes. Ilusão de imortalidade mesmo quando há uma disposição de sacrifício. Ausência de premonições.
A história política brasileira, pontilhada de sofrimentos, teve dois momentos trágicos, segundo a definição de Aristóteles. O suicídio de Getúlio Vargas em 24 de Agosto de 1954, responsável pela má fama do mês, foi uma tragédia pessoal de um ser superior que conseguiu enxergar a dimensão daquela derrota que lhe infligiam. A revolta popular que horas depois reverteu o quadro, incendiou o país e, um ano depois, tornou possível a eleição de JK mostra que as tragédias podem encerrar-se com finais amenos, apesar do sangue e da dor, tal como acontece em "Macbeth" e "Henrique V", de Shakespeare.
A morte de Tancredo Neves, 31 anos depois, marcou Abril como mês aziago. Foi mais "grega", mais caprichosa e sutil, porque sem tiros e grandes gestos: irrompeu na véspera da festa. O mestre da habilidade política, o senhor dos arranjos e combinações, não chegou à posse.
Como a Moisés a quem Deus não deixou alcançar a Terra Prometida, Tancredo foi barrado dos retoques finais na sua mais admirável cartada. A prostração nacional que se seguiu àquele mês de cirurgias e angústias transformou uma tragédia pessoal numa tragédia nacional. O luto oficial ficou aquém do luto individual, genuíno, que, somado, armou um gigantesco velório pelo país afora.
Catarse aristotélica em seu mais puro sentido -purificação pela emoção. Em Abril de 1985, o país esteve perto de encontrar o seu inato senso trágico, a imperiosa tristeza que teimam em surrupiar-lhe, em troca de minguados prazeres para fingir felicidade.
Aos ensandescidos e atarantados escapa o sentido trágico da existência. Exaltados e tolos não têm noção dos riscos, não se situam e não percebem que podem estar na rota dos confrontos e desenlaces. Muitas vezes são mensageiros, ou mesmo instrumentos das tramas que ajudam a articular graças à própria cegueira.
Reduzir as duas mortes desta semana a um "abalo na base de sustenção política do governo" como manchetearam alguns jornais não é apenas primarismo. É grosseira insensibilidade. Emasculação da capacidade de sofrer e transmitir emoções. Inaptidão para avaliar a extensão do Vale de Lagrimas, a dolorida jornada existencial que fere os grandes como os pequenos.
Um, esguio e elegante, outro, corpulento e espalhafatoso. Este trabalhava um magnífico projeto pessoal, aquele orquestrava projetos alheios. Igualmente fidalgos na forma de devotar-se, generosos como só acontece com os superdotados. Possuíam desígnios, missões, imaginaram-se imortais, desafiaram a medicina, estatísticas e os deuses.
Do desaparecimento quase simultâneo desses exímios e apaixonados espadachins que lutavam lado a lado não obstante saberem que, breve, poderiam estar em campos opostos, sobram ângulos heróicos e galantes. A disputa entre adversários superiores gera ingredientes superiores. Nessas condições, o golpe rude e equânime do destino, além das lágrimas e da dor, deixa como consolo um resíduo edificante. Exemplar.
No entanto, no grande anfiteatro da vida brasileira está funcionando, há alguns pares de anos, um circo político. Nele, um reduzido time de cassandras de ambos os sexos não consegue enxergar seres humanos, apenas resultados eleitorais. Apequena tudo o que parece mais denso e nobre. Inclusive os sofrimentos. Que não tenham lido Miguel de Unamuno com a sua visão trágica e heróica da vida é menos aberrante. Que não consigam impregnar-se de solenidade, vergar-se perante a fatalidade ou dimensionar o momento supremo tratando-o como mero acidente no percurso do poder é uma perigosa desumanização. Dramatizar miudezas resulta sempre em farsa.
Na estrutura narrativa da tragédia grega, o coro ocupa papel destacado: figuras mascaradas e impessoais, ora próximas, ora distantes, comentam, lamentam, advertem. Não interferem, resignam-se a levar o espectador ao âmago do enredo para tirar as necessárias lições.
A tragédia na Grécia Antiga era uma forma de conhecimento, aprendizado por meio da dor. Exercício de grandeza e dignidade. A função do coro é mediar -para elevar os espectadores ao plano de heróis.



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