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Tragédias em Abril, o coro
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Agosto, mês do desgosto, reabilitou-se às custas de duas
tragédias em Abril. Fulminantes e perversos, num lapso de
dois dias os Fados carregaram
dois companheiros de trincheira com tal ímpeto e precisão
que fica difícil definir se são
dramas separados ou atos de
um mesmo e maligno remoinho.
Foi em 1985 que o quarto mês
desbancou o oitavo no calendário dos agouros, no exato
momento em que tomaria posse o primeiro presidente civil
depois de 21 de regime militar.
Coincidências e sincronismos
retiram a impressão de casualidade, dão um toque de causalidade e determinismo. Sérgio Motta foi enterrado um dia
antes do 13º aniversário da
morte de Tancredo Neves, Luís
Eduardo Magalhães, foi abatido no mesmo dia que o estadista mineiro.
Homens do diálogo e do entendimento, tanto deram de si
que não conseguiram acertar-se com os prazos e limites.
Tombaram prematuros, cada
um na sua faixa etária.
Aristóteles, cerca de 335 a. C.,
foi o primeiro a preocupar-se
em definir o que é uma tragédia sob o ponto de vista literário. Mas os gregos já conheciam o gênero 200 anos antes,
a partir dos relatos teatrais de
Ésquilo e, posteriormente, de
Sófocles e Eurípides. A formulação aristotélica transcende
ao palco, arena ou anfiteatro.
É quase semântica ao diferenciar a tragédia de uma catástrofe, atrocidade, infortúnio
ou final infeliz.
A tragédia, para ele, pressupõe uma sucessão de eventos
encadeados, organizados de
forma que produzam um sentido, por mais inesperado que
seja, e, em seguida, a revelação
de sua extensão. Mutação violenta produzida exclusivamente pela ação humana por
meio de de impulsos, erros de
juízo, paixões.
A tragédia, vista pelos românticos e modernos, decorre
da presunção humana de onipotência e onisciência. Colisão
de vontades, conflito entre o livre-arbítrio e o arbítrio de outras forças chamadas Destino.
Falha de percepção sobre a fragilidade de nossa existência e
nossos poderes. Ilusão de imortalidade mesmo quando há
uma disposição de sacrifício.
Ausência de premonições.
A história política brasileira,
pontilhada de sofrimentos, teve dois momentos trágicos, segundo a definição de Aristóteles. O suicídio de Getúlio Vargas em 24 de Agosto de 1954,
responsável pela má fama do
mês, foi uma tragédia pessoal
de um ser superior que conseguiu enxergar a dimensão daquela derrota que lhe infligiam. A revolta popular que
horas depois reverteu o quadro, incendiou o país e, um
ano depois, tornou possível a
eleição de JK mostra que as
tragédias podem encerrar-se
com finais amenos, apesar do
sangue e da dor, tal como
acontece em "Macbeth" e
"Henrique V", de Shakespeare.
A morte de Tancredo Neves,
31 anos depois, marcou Abril
como mês aziago. Foi mais
"grega", mais caprichosa e sutil, porque sem tiros e grandes
gestos: irrompeu na véspera da
festa. O mestre da habilidade
política, o senhor dos arranjos
e combinações, não chegou à
posse.
Como a Moisés a quem Deus
não deixou alcançar a Terra
Prometida, Tancredo foi barrado dos retoques finais na sua
mais admirável cartada. A
prostração nacional que se seguiu àquele mês de cirurgias e
angústias transformou uma
tragédia pessoal numa tragédia nacional. O luto oficial ficou aquém do luto individual,
genuíno, que, somado, armou
um gigantesco velório pelo país
afora.
Catarse aristotélica em seu
mais puro sentido -purificação pela emoção. Em Abril de
1985, o país esteve perto de encontrar o seu inato senso trágico, a imperiosa tristeza que teimam em surrupiar-lhe, em troca de minguados prazeres para
fingir felicidade.
Aos ensandescidos e atarantados escapa o sentido trágico
da existência. Exaltados e tolos
não têm noção dos riscos, não
se situam e não percebem que
podem estar na rota dos confrontos e desenlaces. Muitas
vezes são mensageiros, ou mesmo instrumentos das tramas
que ajudam a articular graças
à própria cegueira.
Reduzir as duas mortes desta
semana a um "abalo na base
de sustenção política do governo" como manchetearam alguns jornais não é apenas primarismo. É grosseira insensibilidade. Emasculação da capacidade de sofrer e transmitir
emoções. Inaptidão para avaliar a extensão do Vale de Lagrimas, a dolorida jornada
existencial que fere os grandes
como os pequenos.
Um, esguio e elegante, outro,
corpulento e espalhafatoso. Este trabalhava um magnífico
projeto pessoal, aquele orquestrava projetos alheios. Igualmente fidalgos na forma de devotar-se, generosos como só
acontece com os superdotados.
Possuíam desígnios, missões,
imaginaram-se imortais, desafiaram a medicina, estatísticas
e os deuses.
Do desaparecimento quase
simultâneo desses exímios e
apaixonados espadachins que
lutavam lado a lado não obstante saberem que, breve, poderiam estar em campos opostos, sobram ângulos heróicos e
galantes. A disputa entre adversários superiores gera ingredientes superiores. Nessas
condições, o golpe rude e equânime do destino, além das lágrimas e da dor, deixa como
consolo um resíduo edificante.
Exemplar.
No entanto, no grande anfiteatro da vida brasileira está
funcionando, há alguns pares
de anos, um circo político. Nele, um reduzido time de cassandras de ambos os sexos não
consegue enxergar seres humanos, apenas resultados eleitorais. Apequena tudo o que parece mais denso e nobre. Inclusive os sofrimentos. Que não
tenham lido Miguel de Unamuno com a sua visão trágica
e heróica da vida é menos
aberrante. Que não consigam
impregnar-se de solenidade,
vergar-se perante a fatalidade
ou dimensionar o momento
supremo tratando-o como mero acidente no percurso do poder é uma perigosa desumanização. Dramatizar miudezas
resulta sempre em farsa.
Na estrutura narrativa da
tragédia grega, o coro ocupa
papel destacado: figuras mascaradas e impessoais, ora próximas, ora distantes, comentam, lamentam, advertem.
Não interferem, resignam-se a
levar o espectador ao âmago
do enredo para tirar as necessárias lições.
A tragédia na Grécia Antiga
era uma forma de conhecimento, aprendizado por meio
da dor. Exercício de grandeza
e dignidade. A função do coro
é mediar -para elevar os espectadores ao plano de heróis.
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