São Paulo, sábado, 25 de maio de 2002

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CORO DE CÂMARA EXAUDI

Elas não cantam cha-cha-cha

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

- Brahms , por exemplo.
- Exemplo de quê?
- De tudo o que, na música, nos entende e nos explica. Você não ouviu as "Liebeslieder-Walzer" (lindo e estranho nome, aliás: "Valsas de Canções de Amor")?
- Não, eu nunca vou a concerto de coro.
- Você deve saber o que está perdendo. Mas também não sabe. Só o repertório desses cubanos do Exaudi já valia a viagem à Sala São Paulo, quarta passada. Quando alguém canta Brahms e Schumann, a gente... simplesmente vai. Não há desculpa para não ir. E depois não deixa de ser curioso escutar um coro de Cuba que não canta cha-cha-chas.
- E eles não cantam?
- Cantaram, claro, cantaram... Depois das maravilhas de Brahms e Schumann -e Mendelssohn, também- o repertório dos repertórios, do século dos séculos, fizeram o previsível e atacaram um cha-cha-cha. Mania de bis. O pior é que foi o melhor da noite. (Para o coro como coro.)
- Imagino. Mas você estava dizendo coisas esquisitas de Brahms.
- Brahms é o Henry James da música. Henry James jamais escreveu uma linha que não fosse plenamente literária, nunca vestiu só a máscara de contista ou romancista, nunca vacilou. Brahms é assim. Só escreveu obras-primas. O resto jogou fora.
Veja essas valsas. Foram escritas para coro e piano a quatro mãos. O texto vem de uma antologia de traduções e imitações de canções populares da Europa, reunidas por um certo G. F. Daumer, que era um poeta menor do romantismo alemão. Quer dizer: um gênero musical e uma escolha literária bem no espírito da prática caseira burguesa. Existem centenas de pecinhas assim para coro e piano, compostas para cantar com os amigos em casa, como era comum na época.
- Já começa a me dar alergia.
- É porque você, mais uma vez, não sabe do que está falando. O maravilhoso, aqui, tem a ver justamente com a forma como Brahms pega o que há de mais trivial -valsinhas, corinhos, poeminhas- e faz disso uma revelação do que pode ser o amor, a fantasia... não sei qual é palavra menos errada para essas paixões que não têm nome, mas que se recolhem todas, para ele, afinal, na frustração. Se é que você sabe do que eu estou falando.
- Frustração? Você está falando de Cuba?
- Engraçadinho. Você devia 1) ter ido ao concerto; e 2) ter visto a seriedade dos cantores.
- Acredito. Mas afinal: são bons?
- Eu disse isso?
- Responda à pergunta.
- Têm qualidades. Nem todas as vozes são um esplendor. E as pianistas apanharam da partitura. Mas deixe eu lhe dizer uma coisa: a música, de qualquer modo, ficou na cabeça, foi um acontecimento.
- Você é sempre tão exagerado.
- Menosprezar é melhor?
- OK. Quantas malditas estrelas?
- Estamos avaliando o concerto, certo? Não a sombra santa de Johannes Brahms, nem os esforços do coro. Foi regular. A verdade soou por meia hora na meia sala cheia de gente; mas a música foi maior que os mensageiros. Mais um exemplo do que estávamos falando no início.
- Exemplo de quê?
- Você não tem jeito, mesmo. Nunca sabe do que estou falando.


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