São Paulo, terça-feira, 25 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS

Brasil recebe exposição com 83 gravuras do mestre holandês, um terço de toda a sua produção

Rastros de Rembrandt

CASSIANO ELEK MACHADO
ENVIADO ESPECIAL A BRASÍLIA

Estão longe dos manicômios os historiadores que afirmaram que o primeiro artista moderno, quase 300 anos antes do modernismo, foi Rembrandt van Rijn.
A tese defendida por críticos de peso, como o húngaro-britânico Arnold Hauser, pode não ser consensual, mas ela ganha corpo rapidamente quando se está frente a um conjunto de obras do mestre holandês.
Esta semana o Brasil vai ter uma dessas raras oportunidades. Começa amanhã no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, e segue em setembro para o CCBB de São Paulo, a mostra "Rembrandt e a Arte da Gravura".
Não é uma exposição "amostra grátis", não. Estão penduradas no prédio comprido de Oscar Niemeyer 83 gravuras de Rembrandt, quase um terço de sua produção completa nessa técnica.
As obras vêm da casa do artista. São gravuras do museu Rembrandthuis (A Casa de Rembrandt), em Amsterdã, prédio no qual ele viveu por 20 anos e onde mora hoje a maior coleção de suas gravuras.
Menos conhecidas no Brasil do que suas pinturas, essas impressões em série não são menos importantes. Elas, justamente, dão conta do modernismo avant-garde do artista nascido em Leiden, em 1606, e morto em Amsterdã em 1669.
A opinião é do "rembrandtófilo" holandês Ed de Heer, curador da exposição juntamente com o compatriota radicado em São Paulo Pieter Tjabbes.
"Em suas gravuras, Rembrandt mostra seu lado mais radicalmente experimental", diz à FolhaNM De Heer. O diretor do museu Rembrandthuis, que está no Brasil para a abertura da exposição, afirma que antes de Rembrandt a gravura era uma técnica predominantemente de reprodução, "do mesmo modo que usamos fotografias hoje em dia". "Ele foi dos primeiros artistas que trabalharam a gravura como um meio artístico."
A marca mais forte disso Rembrandt gravou na história com o instrumento chamado de ponta-seca. O aparato usado para entalhar as chapas de cobre com as quais se imprime as gravuras não foi invenção de Rembrandt. Albrecht Dürer, talvez o primeiro grande gravador da história, já utilizava essa espécie de agulha com ponta afiada. Mas ninguém a usava como o holandês.
Com combinações pouco usuais de ponta-seca e buril, outro instrumento de gravar, mais utilizado, Rembrandt operou milagres, criando texturas e áreas de claros-escuros inéditas na história da arte.
Por trás disso, havia claro os talentos imbatíveis de seus olhos e traços, mas também uma série de desenvolvimentos técnicos.
Ele inovou no tipo de verniz que besuntava nas chapas antes de gravar, solução pastosa que dava mais liberdade de desenho, mudou as concentrações dos ácidos nos quais mergulhava as placas de cobre, fazendo com que a corrosão mais lenta deixasse seus traços mais fiéis, e experimentou com farta variedade de papéis.
"Rembrandt deve ter sido o único artista ocidental a usar papel japonês no século 17. Sabemos disso muito bem por que a casa que comercializava esses papéis ainda existe, e eles têm documentadas as quantidades que traziam do Japão. Não era muita coisa. Quase tudo ia para Rembrandt", diz Ed de Heer.
O dinheiro para essas extravagâncias, como a importação de papéis amarelos e cinzas, muito caros na época, vinha de duas fontes. Rembrandt foi um artista valorizado em vida. Havia muito mais demanda pelos seus retratos do que mercado. Não conseguia fazer tantos quantos os que lhe solicitavam.
Mas foi quando casou-se com Saskia van Uylenburgh, de família poderosa de Amsterdã, que seu cofre ganhou mais conteúdo, que ele esbanjava em uma coleção de gravuras de outros artistas que chegou a ter 10 mil peças.
"Ele chegou a pagar o salário de um ano de um trabalhador da época por uma gravura", conta De Heer.
Das histórias anedóticas que rondam qualquer gênio havia uma que afirmava que o artista chegou a desembolsar boas quantias por obras dele mesmo, das quais ele não tinha guardado cópia.
A mais famosa delas, e uma de suas obras-primas na gravura, é a obra "Cristo Pregando", que é conhecida mundialmente como "A Gravura de Cem Florins". A história que se conta desde o século 18 é que Rembrandt teria pago esse valor em um leilão para comprar uma boa impressão de sua gravura.
Seja lá como for, um exemplar dessa obra feita entre 1643 e 1649 -veja quanto tempo ele podia levar para fazer uma gravura- está na exposição. "Cristo Pregando", aliás, divide a mesma parede com outros dos destaques máximos tanto da gravura de Rembrandt quanto da exposição.
Ao seu lado, estão "Cristo Apresentado ao Povo", "Cristo Curando os Doentes", "Ressureição de Lázaro" e dois estágios diferentes do espantoso "As Três Cruzes".
Não é só entre as obras religiosas, um dos dez núcleos da exposição, que estão as obras mais importantes de Rembrandt, quase todas elas à mostra no Brasil.
Rembrandt era um auto-retratista compulsivo. Se desenhou, pintou e gravou como poucos artistas da história.
Em "Pintura Holandesa -1600-1800" (lançado por aqui pela Cosac & Naify), o historiador Seymour Slive classifica a prática de auto-retratos de Rembrandt como o "diário do artista". Ao longo de 45 anos ele fez cerca de 80 auto-retratos. Um dos melhores de todos é a gravura "Auto-retrato Apoiado num Muro de Pedra", que está na mostra.
"É um dos poucos auto-retratos formais que ele fez em gravura. E no ano em questão, 1639, ele estava no pico de sua carreira", anota De Heer.
O curador também pede que o público preste atenção nas paisagens de Rembrandt. "Ele pintou raríssimas paisagens. Nas gravuras ele mostra grande destreza para esse tema."
O Rembrandt pintor, explica o curador, era muito menos versátil do que o gravador. "Em suas gravuras, ele trabalhou com um número muito maior de temas. Como pintor, Rembrandt era um artista historiador. Pinturas históricas eram as mais difíceis de ser feitas, por isso ele queria ser um. Na gravura ele se soltava."
As amostras na exposição são muitas. Mendigos, que fazem lembrar os que Francisco Goya pintaria séculos depois, nus, como o precioso "Júpiter e Antíope", cenas alegóricas e até uma curiosa natureza-morta de uma concha estão no CCBB. O generoso corpus de gravuras está complementado pela exibição de uma matriz de cobre talhada por Rembrandt.
Por fim, há um duvidoso "antes e depois" do mestre. Além das 83 obras de Rembrandt, estão na exposição um irregular conjunto de 30 trabalhos feitos por predecessores e sucessores de Rembrandt. Vale para dar uma espiada em uma divertida peça de Picasso, que, como bom experimentalista, ficou fascinado pela gravuras do mestre de Leiden.
"Rembrandt e a Arte da Gravura" esteve antes no Museu de Bellas Artes de Buenos Aires. Ed de Heer joga pimenta na velha disputa Brasil-Argentina: "Lá foram 180 mil visitantes à mostra. Quero ver quantas virão no Brasil".


REMBRANDT E A ARTE DA GRAVURA
Onde: Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília (tel. 0/xx/61/310-7081). Quando: de amanhã até 4 de agosto (no CCBB-SP de 7/9 a 3/11). Quanto: entrada franca




Texto Anterior: Teatro: Peça desata falsos laços familiares
Próximo Texto: Brasil espera a chegada de soldados e cavalos chineses
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.