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São Paulo, quarta-feira, 25 de junho de 2003

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MARCELO COELHO

Dois lados de uma mesma cédula

Não há favelados, nem retirantes, nem mendigos, muito menos operários e camponeses em "O Homem que Copiava". Estamos longe dessas figuras caras ao universo da esquerda no filme de Jorge Furtado. Mas seu protagonista é jovem, negro e pobre; trabalha numa papelaria.
Trata-se do rapaz do xerox -ou melhor, do "operador da fotocopiadora", como ele prefere dizer. Seus problemas não são a miséria, a violência, o desemprego ou a discriminação racial. André (Lázaro Ramos) está o tempo todo pensando em como arranjar R$ 38: quer comprar uma camisola para sua mãe. Discute com um amigo para saber quem vai pagar o cafezinho. Desde a primeira cena do filme, o público é jogado num universo em que dois ou três reais fazem diferença crucial na hora de passar pelo caixa do supermercado.
Poucos filmes brasileiros, creio eu, terão dado ao dinheiro -ao tutu, à grana, na sua materialidade bem comezinha, na sua falta bem caracterizada- a função de ser quase personagem da história, como acontece em "O Homem que Copiava". Bem que o filme também poderia ser chamado "O Homem que Calculava", como no livro de Malba Tahan: o protagonista vive com o dinheiro contado e passa boa parte do tempo (como qualquer cineasta brasileiro, aliás) administrando seu mínimo orçamento.
Há outra coisa curiosa na história de André. Sua colega de trabalho, os amigos, o chefe, a moça em quem ele está interessado são todos brancos e em nenhum momento do filme o fato de ele ser negro parece atrapalhar os seus projetos. Não é que o racismo real ou latente da sociedade brasileira devesse ser apontado a todo custo; mas a trama simplesmente ignora a cor do personagem como um fator digno de menção ou de elaboração dramática.
É como se o personagem não fosse negro, ou melhor: é como se nenhum racismo, nem o mais disfarçado, existisse no Brasil. Isso não chega a ser uma inverossimilhança. Mas o enredo de "O Homem que Copiava" está montado em torno de um golpe muito pouco plausível (André descobre um método extremamente tosco de obter dinheiro), e a idéia de cópia, de falsa identidade, de engano, está presente no filme a partir do próprio título.
Não é difícil concluir que Jorge Furtado esconde várias cartas na manga e que, sob a aparência de uma simpática comediazinha popular, haveria alguma intenção crítica bem definida. O diretor é conhecido pelo curta-metragem "Ilha das Flores", divertida e didática peça de denúncia do capitalismo global.
Minha impressão, contudo, é que os subentendidos e ironias deste longa não deram muito certo e terminaram sendo engolidos pela imoralidade do sistema que se queria denunciar.
Somos levados a torcer pelo sucesso da empreitada de André, como em qualquer bom filme de conto-do-vigário. A malandragem como forma de se vingar dos poderosos é sempre bem recebida pelo público, ainda mais se revestida de uma aura de ingenuidade, de pureza, como no caso de "O Auto da Compadecida", merecido sucesso da Globo Filmes.
Mas em "O Homem que Copiava" não há esse tipo de malandragem popular, exceto talvez na figura coadjuvante e simpaticíssima de Pedro Cardoso. O que há, a meu ver, é apologia da "Lei de Gérson". Mais do que isso, o "levar vantagem em tudo" acarreta alguns atos criminosos com os quais o público, imagino, está longe de se solidarizar.
Suscita-se uma sensação de estranhamento e mesmo de forte repulsa moral diante do desfecho do filme, que combina, em poucas cenas, afirmação da cultura consumista, elogio da brasilidade, beija-mão a um artista da TV, consagração da impunidade e do salve-se-quem-puder. Haverá ironia, senso oculto nesse final quase escandaloso? Pode ser.
Estranhamente, o filme todo age como se levasse a sério a história que está contando; o desfecho é direto, sem obliquidade, sem subentendidos. Tudo se passa como se ninguém (público, patrocinadores, produtora, diretor) estivesse percebendo o que há de afrontoso na história.
Será que esse final "em brancas nuvens", esse happy end impassível, é uma provocação secreta do diretor? Como se ele sugerisse, por exemplo, que o comportamento "normal" da classe dominante é sempre acintoso, mas só nos choca quando o vemos copiado pelos personagens pobres da história. Assim, se o público se indignar com o filme, é porque não se enxerga.
Uma modalidade de "cinismo popular", em vez do paternal elogio da malandragem, estaria então sendo proposta. Mas para quem? Para que público, precisamente? O diretor parece, na melhor das hipóteses, divertir-se com seus próprios botões, indo a contrapelo do que o filme apresenta ao espectador do cinema.
"O Homem que Copiava" poderia ser simultaneamente obra de entretenimento e crítica; mas parece que os dois lados da moeda (ou da cédula, para ficar no tema do filme) não coincidem aqui. Para que seja visto como diversão, produzida pela Globo Filmes etc., o filme tem de abafar todo o seu potencial crítico; para ser crítico, não poderia fingir tanta inocência.


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