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MARCELO COELHO
Dois lados de uma mesma cédula
Não há favelados, nem retirantes, nem mendigos, muito menos operários e camponeses em "O Homem que Copiava". Estamos longe dessas figuras caras
ao universo da esquerda no filme
de Jorge Furtado. Mas seu protagonista é jovem, negro e pobre;
trabalha numa papelaria.
Trata-se do rapaz do xerox
-ou melhor, do "operador da fotocopiadora", como ele prefere dizer. Seus problemas não são a miséria, a violência, o desemprego
ou a discriminação racial. André
(Lázaro Ramos) está o tempo todo pensando em como arranjar
R$ 38: quer comprar uma camisola para sua mãe. Discute com um
amigo para saber quem vai pagar
o cafezinho. Desde a primeira cena do filme, o público é jogado
num universo em que dois ou três
reais fazem diferença crucial na
hora de passar pelo caixa do supermercado.
Poucos filmes brasileiros, creio
eu, terão dado ao dinheiro -ao
tutu, à grana, na sua materialidade bem comezinha, na sua falta bem caracterizada- a função de ser quase personagem da história, como acontece em "O Homem que Copiava". Bem que o filme também poderia ser chamado "O Homem que Calculava", como no livro de Malba Tahan: o
protagonista vive com o dinheiro
contado e passa boa parte do tempo (como qualquer cineasta brasileiro, aliás) administrando seu
mínimo orçamento.
Há outra coisa curiosa na história de André. Sua colega de trabalho, os amigos, o chefe, a moça em quem ele está interessado são todos brancos e em nenhum momento do filme o fato de ele ser negro parece atrapalhar os seus
projetos. Não é que o racismo real
ou latente da sociedade brasileira
devesse ser apontado a todo custo;
mas a trama simplesmente ignora a cor do personagem como um
fator digno de menção ou de elaboração dramática.
É como se o personagem não
fosse negro, ou melhor: é como se
nenhum racismo, nem o mais disfarçado, existisse no Brasil. Isso
não chega a ser uma inverossimilhança. Mas o enredo de "O Homem que Copiava" está montado em torno de um golpe muito pouco plausível (André descobre um
método extremamente tosco de
obter dinheiro), e a idéia de cópia,
de falsa identidade, de engano,
está presente no filme a partir do
próprio título.
Não é difícil concluir que Jorge
Furtado esconde várias cartas na
manga e que, sob a aparência de
uma simpática comediazinha popular, haveria alguma intenção
crítica bem definida. O diretor é
conhecido pelo curta-metragem
"Ilha das Flores", divertida e didática peça de denúncia do capitalismo global.
Minha impressão, contudo, é
que os subentendidos e ironias
deste longa não deram muito certo e terminaram sendo engolidos
pela imoralidade do sistema que
se queria denunciar.
Somos levados a torcer pelo sucesso da empreitada de André, como em qualquer bom filme de
conto-do-vigário. A malandragem como forma de se vingar dos
poderosos é sempre bem recebida
pelo público, ainda mais se revestida de uma aura de ingenuidade, de pureza, como no caso de "O
Auto da Compadecida", merecido sucesso da Globo Filmes.
Mas em "O Homem que Copiava" não há esse tipo de malandragem popular, exceto talvez na figura coadjuvante e simpaticíssima de Pedro Cardoso. O que há, a
meu ver, é apologia da "Lei de
Gérson". Mais do que isso, o "levar vantagem em tudo" acarreta
alguns atos criminosos com os
quais o público, imagino, está
longe de se solidarizar.
Suscita-se uma sensação de estranhamento e mesmo de forte repulsa moral diante do desfecho
do filme, que combina, em poucas
cenas, afirmação da cultura consumista, elogio da brasilidade,
beija-mão a um artista da TV,
consagração da impunidade e do
salve-se-quem-puder. Haverá ironia, senso oculto nesse final quase
escandaloso? Pode ser.
Estranhamente, o filme todo
age como se levasse a sério a história que está contando; o desfecho é direto, sem obliquidade,
sem subentendidos. Tudo se passa
como se ninguém (público, patrocinadores, produtora, diretor) estivesse percebendo o que há de
afrontoso na história.
Será que esse final "em brancas
nuvens", esse happy end impassível, é uma provocação secreta do
diretor? Como se ele sugerisse, por
exemplo, que o comportamento
"normal" da classe dominante é
sempre acintoso, mas só nos choca quando o vemos copiado pelos
personagens pobres da história.
Assim, se o público se indignar
com o filme, é porque não se enxerga.
Uma modalidade de "cinismo
popular", em vez do paternal elogio da malandragem, estaria então sendo proposta. Mas para
quem? Para que público, precisamente? O diretor parece, na melhor das hipóteses, divertir-se com
seus próprios botões, indo a contrapelo do que o filme apresenta
ao espectador do cinema.
"O Homem que Copiava" poderia ser simultaneamente obra de
entretenimento e crítica; mas parece que os dois lados da moeda
(ou da cédula, para ficar no tema
do filme) não coincidem aqui. Para que seja visto como diversão,
produzida pela Globo Filmes etc.,
o filme tem de abafar todo o seu
potencial crítico; para ser crítico,
não poderia fingir tanta inocência.
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