São Paulo, quinta, 25 de junho de 1998

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Nova lei desmoraliza o Brasil legal

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Vai faltar cadeia. Entrou em vigor, na última sexta-feira, a nova lei de direitos autorais, regulamentando a reprodução de livros, música gravada, softwares e documentos na Internet. As intenções são louváveis: coibir a pirataria e preservar os direitos de propriedade intelectual. Na prática, porém, a nova lei empurra para a ilegalidade a quase totalidade dos pesquisadores e estudantes universitários brasileiros. Não vai pegar.
O que tínhamos antes era razoável e passível de implementação. Pela lei antiga, promulgada em 1973, não era considerada ilegal a reprodução integral de um livro, desde que só fosse feita uma cópia e contanto que não se destinasse a utilização com intuito de lucro. A partir de agora, entretanto, isso passa a ser proibido.
Pela nova lei, não é mais permitida até mesmo a reprodução parcial de livros para uso pessoal ou comercial, exceto quando se trata de "pequenos trechos" e for feita pelo próprio interessado. A pena prevista para os infratores, conforme noticiou a imprensa, é draconiana: detenção de três meses a um ano ou reclusão de um a quatro anos, além de multa.
Dá para acreditar!? Seria cômico, se não fosse melancólico. A fúria legiferante do nosso patronato político e o seu absurdo desprezo pelas mais comezinhas realidades parecem não ter limites. Como imaginar que uma lei como essa possa ter qualquer outro efeito que não o de estimular o cinismo debochado dos jovens diante da legislação vigente, reforçando ainda mais a anomia e o descrédito do Brasil legal?
A falta de senso prático da nova lei de direitos autorais é flagrante. O que, mais precisamente, vem a ser um "pequeno trecho" de uma obra? É um capítulo, um número fixo de páginas ou o quê? Depende do tamanho do livro? E se forem várias cópias sucessivas de "pequenos trechos", mas tiradas uma de cada vez? É delito pedir para alguém xerocar um "pequeno trecho" por você? É crime ter uma cópia de livro em casa?
Outra questão é o domínio de aplicação da lei. Como ficam os artigos em periódicos especializados e os livros importados? Estão dentro ou fora da nova legislação? E os títulos brasileiros que estão fora de catálogo? Será que eles também ficarão proibidos por lei de serem fotocopiados?
Seria um absurdo patente impedir alguém de copiar uma obra que se encontra esgotada. Mas se a lei não se aplica nesses casos, como proceder em caso de dúvida? A única saída seria transformar cada operador de máquina xérox num especialista hiperatualizado acerca do que está ou não disponível no mercado editorial brasileiro...
Problemas operacionais à parte (como fica, por exemplo, a cópia da cópia?), a nova lei não passa no mais elementar teste de exequibilidade. Seria ótimo que os estudantes brasileiros pudessem adquirir regularmente todos os livros que utilizam -ou deveriam utilizar- nos cursos. Como professor (e autor), eu só poderia aplaudir. Na prática, é claro, isso é inviável.
Em diversos cursos, as listas de leitura são extensas. Não há um tratado ou manual que contenha toda a matéria, sendo necessária a consulta de inúmeros trechos -não necessariamente "pequenos"- espalhados em várias obras. No caso dos livros técnicos de reduzida tiragem, em particular, o elevado preço da obra torna a compra proibitiva. O livro é caro porque a edição é pequena, e ela é pequena porque o livro é caro.
Se a lei proíbe o xérox, como vai fazer o aluno de menor renda, aquele que frequenta o curso noturno e dá duro para custear os estudos? Resposta: ele vai se sentir diretamente discriminado e vai ignorar a lei. Suponha, entretanto, que as autoridades teimem em aplicá-la, fiscalizando com rigor o uso do xérox nas faculdades e centros acadêmicos. O que aconteceria em seguida?
Os interessados continuarão ignorando a lei, só que agora fazendo as cópias de que precisam em escritórios, empresas ou, quem sabe, a partir de um novo serviço de pirataria via Internet. A repressão desastrada de hábitos e costumes enraizados sempre foi um poderoso estímulo à criatividade e à inovação tecnológica. A disseminação do equipamento e o avanço das técnicas de reprodução tornam inviáveis qualquer veleidade de coibir legalmente tais práticas.
Suponha, contudo, que as autoridades, num afã de zelo e rigorismo, resolvam ir às últimas consequências na implementação da nova lei. Alguém consegue imaginar um jovem universitário cumprindo pena de reclusão por causa do crime inominável de ter feito uma cópia clandestina de "Raízes do Brasil" ou dos "Ensaios Analíticos", de Simonsen?
Se ao menos ele fosse graduado, teria direito a prisão especial. Mas sejamos otimistas: quem sabe agora, preso, ele finalmente encontre tempo para ler as obras que xerocou...
O problema do direito autoral existe, e a tendência é que ele se agrave com as novas tecnologias, para desespero do crescente número de profissionais que vive da criação e transmissão de conteúdos informativos.
O dilema é como garantir a máxima liberdade de acesso ao estoque de bens culturais, mas ao mesmo tempo preservar a remuneração legítima de quem correu o risco e investiu o seu trabalho e talento na produção de novos bens culturais.
Não existem soluções mágicas. Por que não buscar, por exemplo, a valorização das nossas bibliotecas, dotando-as de um maior número de títulos e exemplares, em vez de partir para o policiamento das fotocópias? Por que não estimular o mercado de livros usados, como acontece nos centros de ensino superior dos países ricos, de modo que os livros de uma turma sejam reaproveitados pelas classes seguintes?
A nova lei de direitos autorais agride o primeiro requisito de qualquer lei, que é a sua exequibilidade. Ela pertence à surrada tradição jurídica, tão nociva à credibilidade das leis no Brasil, segundo a qual com "decretos, alvarás e ordens régias" é possível resolver qualquer problema da nossa sociedade, do ensino básico à destruição do meio ambiente.
O resultado disso é transformar o marco legal num labirinto gótico de aspirações desencontradas. Em vez de servir como o arcabouço mínimo necessário para a convivência pacífica e civilizada entre os membros da comunidade, ele se torna um projeto idealizado de nação -uma utopia grotesca pela qual o patronato político se desincumbe de suas responsabilidades e "condena" o país a um futuro melhor.
O único detalhe é que, como os bons sentimentos dos legisladores são brutalmente esmagados pela realidade, o efeito líquido é a total desmoralização das leis e o desrespeito generalizado aos seus preceitos.
É difícil imaginar uma estufa mais propícia do que essa ao florescimento da ilegalidade e da corrupção. Quanto mais anárquico e corrupto um país, mais detalhista, "avançado" e exigente costuma ser o seu sistema legal.



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