São Paulo, Sexta-feira, 25 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O VEREDICTO
Capitu absolvida


Cem anos depois, juiz Sepúlveda Pertence absolve personagem do romance "Dom Casmurro", acusada de trair o marido Bentinho


MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
Editor de Domingo

Um século depois de vir a público, foi julgado e sentenciado o rumoroso caso relatado pelo sr. Bento Santiago, o Bentinho, no romance "Dom Casmurro", de Machado de Assis. A centenária querela, envolvendo a suspeita de adultério da mulher do narrador, Maria Capitolina Pádua, a Capitu, com o amigo Escobar, foi decidida em julgamento "jurídico e literário" realizado na última segunda-feira no auditório deste jornal.
O jurista José Paulo Sepúlveda Pertence, ministro do Supremo Tribunal Federal, depois de considerar os argumentos apresentados, decidiu pela absolvição, não apenas por insuficiência de provas, mas por inconstitucionalidade dos dispositivos legais da época à luz da atual ordem constitucional -o que o fez declarar "irrelevante a indagação".
Apesar da absolvição, o juiz declarou sua convicção pessoal de que ocorreu o adultério: "Não sei, se devesse votar secretamente num júri, se resistiria à minha convicção íntima moral de que existiu o adultério. Mas devo agir aqui como juiz profissional, impedido de decidir por consciência e obrigado a decidir conforme as provas".
O advogado Márcio Thomaz Bastos, ex-presidente da OAB, encarregou-se da acusação, ficando a defesa representada por Luiza Nagib Eluf, procuradora de Justiça em São Paulo. Foram convocados como testemunhas da acusação os escritores Carlos Heitor Cony e Marcelo Rubens Paiva. Testemunharam pela defesa o historiador Boris Fausto e a escritora Rosiska Darcy de Oliveira.
Um público majoritariamente feminino lotou a sessão, que transcorreu por cerca de três horas.
De modo peculiar, Cony e Paiva deram início aos depoimentos insistindo na ocorrência do adultério mas, ao mesmo tempo, na inocência de Capitu.
As testemunhas trataram a relação extraconjugal como uma prática não apenas defensável, mas até mesmo desejável -mais ainda, tratando-se o marido, no entender de Cony, de um "chato" e, no de Paiva, de personagem com pendores homossexuais.
Essa quase "elegia do adultério", nas palavras do juiz Sepúlveda Pertence, foi objeto de uma pequena reprimenda no discurso que embasou a sentença: "As testemunhas chegaram perto da elegia do adultério, ao menos quando o marido é chato (disse-o sem conter o riso). Além de antiisonômico, é cruel. Quase teríamos, então, que trocar o título do romance imortal de Machado para tomar de empréstimo de Nelson Rodrigues o "Perdoa-me por me Traíres""...
Thomaz Bastos pediu a condenação com base num conjunto de indícios que daria verossimilhança à tese do adultério.
À defesa, coube tentar demonstrar, com um previsível acento feminista, que o marido, já não apenas um chato com pendores homossexuais, era um espírito inseguro, filho único abastado, incapaz de conviver sem fabulações paranóicas com uma mulher bela, com personalidade e luz próprias.
O juiz procurou proteger a memória de Bentinho -"tão vilipendiada nesta audiência"- e também o "gênio" de Machado de Assis que, em sua opinião, não fornece no romance prova que possa ser considerada "acima de qualquer dúvida razoável".
Sepúlveda Pertence decidiu levar em consideração a lei da época em que se deu o fato, mostrando que o Código Penal do Império previa pena de prisão para a mulher adúltera, deixando o homem adúltero sujeito a condenação apenas no caso de manter uma concubina em regime de segundo casamento.
Não seria essa desigualdade no tratamento dispensado ao homem e à mulher que caracterizaria, por si só, a inconstitucionalidade dos dispositivos: "É célebre o dito de Aristóteles a que Rui Barbosa deu expressão extremamente elegante, de que a igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam", disse o juiz.
Ele considerou superadas "as razões do discurso machista" que pretendiam punir mais gravemente a mulher devido ao risco da geração de filiação adulterina.
"Isso perde quase toda sua força no sistema constitucional vigente", disse o juiz, considerando "que o próprio reconhecimento da filiação adulterina perdeu todas as restrições que historicamente o inibiam".


Texto Anterior: Artes Plásticas: Museu Van Gogh reabre em Amsterdã após reforma
Próximo Texto: Frase
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.