São Paulo, sábado, 25 de julho de 1998

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"Veronika" é um romance que não começa nunca

MARCELO RUBENS PAIVA
especial para a Folha


Olha, já vou avisando, eu nunca tinha lido um livro de Paulo Coelho. "Veronika Decide Morrer" rompeu meu hímen. E falei para os caras que me pediram a resenha, se não seria melhor alguém que tivesse lido toda sua obra. "Não, queremos você", foi a resposta.
Também quero deixar claro: sou amigo do homem e nunca tive nada contra ele e já o defendi publicamente, mais de uma vez, de críticos e escritores que torcem a napa diante de uma literatura popular "made in Brazil". Então tá.
Nada mais saudável para o mercado editorial brasileiro, mercado inflacionado por "gênios", que um Paulo Coelho assumidamente comercial, pop. Foi depois do Plano Cruzado que se descobriu, no Brasil, uma massa potencial de leitores de mais vendidos órfãos de autores pátrios. Um novo filão empurrava para o barranco o dito "Brasil, país de analfabetos".
Coelho ocupou esse espaço meio sem querer, sem querer querendo, querendo muito vender e trabalhando para isso: palestras, entrevistas, contratos que estipulam quantias para o marketing, viagens e a paciência de autografar milhares de exemplares em feiras de livros, pelos sete rincões.
O público o ama, os críticos o desprezam, e ele toca sua vida, ao som de caixa, escrevendo um atrás do outro, sem se abalar, sem mudar de estilo -o que é virtude.
Minha primeira revelação ao ler "Veronika". Morde a língua quem diz que Coelho escreve apenas esotéricos de auto-ajuda. "Veronika" é um romance, tem todos os predicados de um, com começo, meio e fim, capítulos que amarram os próximos, suspense, peripécia e revelação.
Por que ele vende tanto? Porque é didático. Explica e explica os acontecimentos. Repete explicações. É digressivo ao extremo. Não quer, de maneira alguma, que o leitor perca o fio da meada.
O narrador é calmo, simples, suave. Os pronomes são bem colocados. Os parágrafos, curtos. As palavras, as do dia a dia. É como uma história para ninar adultos.
Veronika, garota de 24 anos da Eslovênia, mora num convento e decide se matar com comprimidos. Cansou de tudo. Espera a morte lendo um artigo sobre um jogo em CD-ROM "criado por Paulo Coelho"; está na primeira página, merchandising nada sutil.
Veronika toma a dose errada e desperta num manicômio, onde o narrador diz que Paulo Coelho esteve três vezes, num similar carioca, algo que só seria revelado após a morte da mãe e do pai, e é revelado no livro, apesar do pai estar vivo, "em pleno gozo de suas faculdades mentais e de sua saúde".
Engraçado alguém falar assim da saúde do pai, "em pleno gozo", como um laudo pericial. Mas é isso mesmo. Paulo Coelho não inventa nada, não experimenta metáforas, não joga com as palavras.
"Olhe para mim, que estou há anos casada com seu pai e procurei lhe dar a melhor educação e os melhores exemplos possíveis", a filha imagina a mãe falando.
É uma reprodução daquilo que qualquer novato escreveria, não? É normal demais, para uma história que se passa num manicômio.
"(...) Estava contente com o que seus olhos viam e seus ouvidos escutavam", escreveu.
Por que não "seus olhos olhavam e seus ouvidos ouviam"? Mais musical. Ou "seus olhos ouviam e seus ouvidos olhavam"? Mais ousado. Ou "seus olhos liam e seus ouvidos compunham"? Mais poético. Ou "seus olhos, vidros, seus ouvidos, não perdidos"? Porque não quer arriscar. Quer o óbvio. Mas, o que é isso?! Eu dando palpites para o escritor que vendeu 20 milhões, ganhou comendas e prêmios lá fora?!
De repente, a personagem acorda, e alguém pergunta: "Você quer que eu a masturbe?". Nossa, o livro vai começar... Que nada, ela dorme de novo, e nada acontece, e o livro nunca começa. Coelho não ousa. É certinho demais. Até o final é feliz, e Eduard, filho de um embaixador, se apaixona por Veronika, no manicômio. Sei...
Sou amigo do homem. Espero que ele não me leve a mal. Achei seu livro sem tempero, mas defenderei até a morte o direito de ele ser publicado e lido.



Livro: Veronika Decide Morrer Autor: Paulo Coelho Lançamento: Objetiva Quanto: R$ 15 (224 págs.)




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