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Letras de câmbio
Febre dos manuscritos toma leilões de arte
CYNARA MENEZES
DA REPORTAGEM LOCAL
Em maio, foi Jack Kerouac
(1922-1969); em julho, James Joyce (1882-1941); agora é a vez de
Gabriel García Márquez, 73, ter as
vísceras de seu processo criativo
expostas e postas à venda: o manuscrito de "Cem Anos de Solidão", a obra mais famosa do Nobel colombiano, vai a leilão no dia
21 de setembro, com a máxima
pompa possível, na Casa Batlló,
um dos ícones da arquitetura de
Gaudí, em Barcelona.
Essa parte remendada, colada,
chuleada e recosturada da obra literária não tem valido pouco. As
cifras são fabulosas. "Cem Anos"
será leiloado com lance mínimo
de US$ 500 mil, e ninguém imagina quanto irá subir até ser arrematado -é possível acompanhar
pela internet, em www.subastasvelazquez.com.
Com "On the Road" foi todo
um recorde: US$ 2,43 milhões,
pagos pelo dono do time de futebol americano Indianapolis Colts,
Jim Irsay, que estava pronto a sacar do bolso até cinco vezes mais
pelo rolo de 40 metros preenchido por Kerouac, com sua escrita
automática, em três semanas (leia
entrevista).
"Eumaeus", rascunho desconhecido de um dos capítulos de
"Ulysses", a obra-prima do irlandês Joyce, foi vendido a um colecionador por US$ 1,2 milhão. Um
ano atrás, as provas de "Um Caminho de Swann", de Marcel
Proust (1871-1922), também ultrapassaram a marca do milhão
de dólares.
O escritor colombiano publicou
um artigo sobre o assunto na revista que dirige, "Cambio", em
que atesta a profunda ironia de
estar quase passando fome na
época em que o hoje milionário
manuscrito, com 1.026 correções
feitas por ele à mão, foi entregue à
editora, em 1966.
Também revela uma certa decepção com os herdeiros do diretor de cinema espanhol Luís Alcoriza, a quem deu de presente o
manuscrito e que, segundo García
Márquez, costumava dizer: "Prefiro morrer antes de vender essa
jóia dedicada por um amigo". Alcoriza morreu em 1992, e sua mulher, três anos atrás. Já não havia
empecilho para o negócio.
Mas por que o manuscrito literário passou a valer tanto? A hipótese mais utilizada para explicar o
fenômeno é tecnológica: com o
computador, textos escritos à
mão, ou mesmo datilografados à
máquina e logo corrigidos pelo
autor, se tornaram raridade.
"Quase nenhum escritor faz isso
hoje em dia", diz o bibliófilo José
Mindlin, ele mesmo proprietário
de mais de 70 manuscritos originais. Entre eles, preciosidades como as provas de "Grande Sertão:
Veredas", de Guimarães Rosa, ou
"Sobrados e Mucambos", de Gilberto Freyre, um hoje inimaginável volume em que até mesmo as
enormes notas bibliográficas são
apontadas a lápis pelo autor.
Mindlin não pretende vender
nada. "Pelo contrário, até gostaria
de comprar mais", diz o bibliófilo,
que estaria disposto, confessa, a
pagar "o que pudesse" por um
manuscrito de Proust.
O professor aposentado de literatura da USP Roberto Brandão,
autor de uma pesquisa, interrompida por falta de verba, sobre a localização dos manuscritos das
obras brasileiras mais importantes, tem outra explicação.
"Até pouco tempo atrás, se procurava esconder o sofrimento do
escritor, o trabalho que resultou
na criação. A arte era considerada
uma coisa divina e esse caráter
humano do processo ficava oculto. Hoje, até por uma tendência de
países mais desenvolvidos, esse
material passou a ser valorizado",
diz Brandão.
Muitos acreditam ser pouco
provável que um leilão como os
que estão acontecendo com
obras-primas no exterior efetivamente ocorra no Brasil. A maior
parte dos manuscritos de obras
importantes está em mãos de instituições públicas ou já em posse
de colecionadores, que negociam
entre eles mesmos.
A família Condé, do Rio, por
exemplo, possui um acervo que
inclui originais como "Estrela da
Manhã", de Manuel Bandeira,
oriundos dos "Arquivos Implacáveis" do jornalista João Condé, da
extinta revista "O Cruzeiro". Não
está, no entanto, disposta a vender nada separadamente.
"Jamais colocaríamos um desses livros em leilão. Isso era o
amor da vida do meu pai", diz
Maria Alice Condé, uma dos quatro filhos do jornalista. "Não temos interesse em vender um livrinho aqui, outro ali."
Maria Alice admite, no entanto,
que ela e os irmãos não estariam
de todo avessos a avaliar uma
proposta que englobasse o lote inteiro, com as correspondências,
fotos e originais dedicados a Condé por nomes como, além de Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond
de Andrade. Quem dá mais?
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