São Paulo, sábado, 25 de agosto de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Letras de câmbio

Febre dos manuscritos toma leilões de arte

CYNARA MENEZES
DA REPORTAGEM LOCAL

Em maio, foi Jack Kerouac (1922-1969); em julho, James Joyce (1882-1941); agora é a vez de Gabriel García Márquez, 73, ter as vísceras de seu processo criativo expostas e postas à venda: o manuscrito de "Cem Anos de Solidão", a obra mais famosa do Nobel colombiano, vai a leilão no dia 21 de setembro, com a máxima pompa possível, na Casa Batlló, um dos ícones da arquitetura de Gaudí, em Barcelona.
Essa parte remendada, colada, chuleada e recosturada da obra literária não tem valido pouco. As cifras são fabulosas. "Cem Anos" será leiloado com lance mínimo de US$ 500 mil, e ninguém imagina quanto irá subir até ser arrematado -é possível acompanhar pela internet, em www.subastasvelazquez.com.
Com "On the Road" foi todo um recorde: US$ 2,43 milhões, pagos pelo dono do time de futebol americano Indianapolis Colts, Jim Irsay, que estava pronto a sacar do bolso até cinco vezes mais pelo rolo de 40 metros preenchido por Kerouac, com sua escrita automática, em três semanas (leia entrevista).
"Eumaeus", rascunho desconhecido de um dos capítulos de "Ulysses", a obra-prima do irlandês Joyce, foi vendido a um colecionador por US$ 1,2 milhão. Um ano atrás, as provas de "Um Caminho de Swann", de Marcel Proust (1871-1922), também ultrapassaram a marca do milhão de dólares.
O escritor colombiano publicou um artigo sobre o assunto na revista que dirige, "Cambio", em que atesta a profunda ironia de estar quase passando fome na época em que o hoje milionário manuscrito, com 1.026 correções feitas por ele à mão, foi entregue à editora, em 1966.
Também revela uma certa decepção com os herdeiros do diretor de cinema espanhol Luís Alcoriza, a quem deu de presente o manuscrito e que, segundo García Márquez, costumava dizer: "Prefiro morrer antes de vender essa jóia dedicada por um amigo". Alcoriza morreu em 1992, e sua mulher, três anos atrás. Já não havia empecilho para o negócio.
Mas por que o manuscrito literário passou a valer tanto? A hipótese mais utilizada para explicar o fenômeno é tecnológica: com o computador, textos escritos à mão, ou mesmo datilografados à máquina e logo corrigidos pelo autor, se tornaram raridade.
"Quase nenhum escritor faz isso hoje em dia", diz o bibliófilo José Mindlin, ele mesmo proprietário de mais de 70 manuscritos originais. Entre eles, preciosidades como as provas de "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, ou "Sobrados e Mucambos", de Gilberto Freyre, um hoje inimaginável volume em que até mesmo as enormes notas bibliográficas são apontadas a lápis pelo autor.
Mindlin não pretende vender nada. "Pelo contrário, até gostaria de comprar mais", diz o bibliófilo, que estaria disposto, confessa, a pagar "o que pudesse" por um manuscrito de Proust.
O professor aposentado de literatura da USP Roberto Brandão, autor de uma pesquisa, interrompida por falta de verba, sobre a localização dos manuscritos das obras brasileiras mais importantes, tem outra explicação.
"Até pouco tempo atrás, se procurava esconder o sofrimento do escritor, o trabalho que resultou na criação. A arte era considerada uma coisa divina e esse caráter humano do processo ficava oculto. Hoje, até por uma tendência de países mais desenvolvidos, esse material passou a ser valorizado", diz Brandão.
Muitos acreditam ser pouco provável que um leilão como os que estão acontecendo com obras-primas no exterior efetivamente ocorra no Brasil. A maior parte dos manuscritos de obras importantes está em mãos de instituições públicas ou já em posse de colecionadores, que negociam entre eles mesmos.
A família Condé, do Rio, por exemplo, possui um acervo que inclui originais como "Estrela da Manhã", de Manuel Bandeira, oriundos dos "Arquivos Implacáveis" do jornalista João Condé, da extinta revista "O Cruzeiro". Não está, no entanto, disposta a vender nada separadamente.
"Jamais colocaríamos um desses livros em leilão. Isso era o amor da vida do meu pai", diz Maria Alice Condé, uma dos quatro filhos do jornalista. "Não temos interesse em vender um livrinho aqui, outro ali."
Maria Alice admite, no entanto, que ela e os irmãos não estariam de todo avessos a avaliar uma proposta que englobasse o lote inteiro, com as correspondências, fotos e originais dedicados a Condé por nomes como, além de Bandeira, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade. Quem dá mais?



Texto Anterior: Programação de TV
Próximo Texto: "Quero fazer o manuscrito viajar e compartilhá-lo", diz comprador
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.