São Paulo, sábado, 25 de agosto de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O eu são os outros

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

No ensaio que serve de posfácio à edição de "Padre Sérgio", de Tolstói, publicada pela Cosac & Naify na coleção Prosa do Mundo, Boris Schnaiderman diz que a novela "constitui certamente um dos momentos mais patéticos de toda a obra tolstoiana".
Após o sucesso de seu romance "Anna Karenina", Leon Tolstói (1828-1910) passou por intensa crise religiosa e ética, que marcaria o resto de sua vida e de sua obra. "Padre Sérgio", escrito na última década do século 19, mas apenas publicado dois anos depois da morte do escritor, faz parte dessa fase tardia em que muitos críticos viram o pregador se sobrepondo ao artista.
Na verdade, as questões que se acirraram com a crise espiritual sempre estiveram presentes na vida e na obra do escritor. Tolstói viveu em busca de uma virgindade do mundo, obcecado por uma idéia de pureza em oposição à violência, à injustiça e à corrupção da sociedade.
E isso podia se manifestar tanto na militância pedagógica posta em prática com os filhos dos camponeses de sua propriedade como no repúdio à hipocrisia e às convenções das instituições eclesiásticas (em nome de princípios cristãos originais, como o amor ao próximo), o que bastou para a sua excomunhão pela igreja ortodoxa em 1901.
"Padre Sérgio" conta a história de Stiepan Kassatski, um comandante exemplar da elite do Exército russo (embora psiquicamente atormentado, como se há de constatar) que abdica de tudo para se tornar monge, recolhido aos confins da natureza, evitando todo contato social, mas sobretudo feminino.
Kassatski tem razões de sobra para tanto. Não sendo rico nem da corte, adotou como princípio de vida ser o melhor em tudo, superar-se sempre, para ser aceito. Mas acabou caindo na armadilha da sua própria tática.
Sua determinação arrivista o levou a se aproximar de uma senhora da corte por quem de fato se apaixona antes de pedi-la em casamento. O pobre comandante é, no entanto, o único a não saber que a dama em questão foi amante do czar, a quem ele jurou servir com a própria vida.
Nada pior para quem está determinado a ser o melhor em tudo do que descobrir o trouxa que é. E é muito menos por algum chamado da fé do que por orgulho (por vergonha e humilhação) que o comandante abdica de todas as suas ambições sociais e se retira para um mosteiro. O motivo da fé é uma impostura análoga ao arrivismo do protagonista.
Todo o problema moral da novela está na oposição entre viver por uma convicção interior (para Deus) e viver para a aprovação dos outros (para os homens, para as convenções).
Ao buscar o recolhimento monástico, porém, o Padre Sérgio não está à procura de si mesmo, mas antes tentando desesperadamente escapar de si, esquecer-se de si, não ver o que é. A alteridade é o espelho que o obriga a ver-se, ela é a humilhação de que fugiu, o testemunho não da sua pretensa superioridade, mas da sua dependência dos olhares dos outros.
Desse ponto de vista, o desejo passa a ser o maior inimigo do eremita: ao mesmo tempo que o impele de volta para os outros, é o que revela o mais profundo de si mesmo, aquilo que o padre não pode conter e de que não pode escapar. É assim que as mulheres passam a ser a encarnação do demônio.
É difícil não ver nessa misoginia desesperada algum tipo de humor negro (ainda que inconsciente) e não rir da tragicomédia de algumas passagens. A mais célebre e mais patética de todas é quando uma mulher de sociedade, conhecendo a fama do Padre Sérgio, faz uma aposta entre amigos e sobe ao retiro do monge para tentá-lo com a sua simples presença, não deixando outra opção ao pobre homem além da autoflagelação.
Seu isolamento, em vez de conduzi-lo a si mesmo e a Deus, faz dele um santo aos olhos dos outros, e ele passa a agir conforme as novas prerrogativas, mais uma vez dependente do que esperam de si. Na ambiguidade dessa parábola, ao mesmo tempo em que denuncia a corrupção da sociedade, a novela acaba mostrando que não há como livrar-se dos outros, porque isso significaria livrar-se de si.
O Padre Sérgio parte do pressuposto de que o inferno são os outros apenas para descobrir que o inferno é ele mesmo. Encontrar Deus na pureza de um retiro espiritual passa a ser, nesse caso, uma impossibilidade que só se resolve na alucinação.

Padre Sérgio
Otiéts Sierguêi
    
Autor: Leon Tolstói
Tradução: Beatriz Morabito
Editora: Cosac & Naify
Quanto: preço a definir (124 págs.)



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