|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
RESENHA DA SEMANA
O eu são os outros
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
No ensaio que serve de
posfácio à edição de "Padre Sérgio", de Tolstói, publicada pela Cosac & Naify na coleção Prosa do Mundo, Boris
Schnaiderman diz que a novela
"constitui certamente um dos
momentos mais patéticos de toda a obra tolstoiana".
Após o sucesso de seu romance "Anna Karenina", Leon Tolstói (1828-1910) passou por intensa crise religiosa e ética, que
marcaria o resto de sua vida e de
sua obra. "Padre Sérgio", escrito
na última década do século 19,
mas apenas publicado dois anos
depois da morte do escritor, faz
parte dessa fase tardia em que
muitos críticos viram o pregador se sobrepondo ao artista.
Na verdade, as questões que se
acirraram com a crise espiritual
sempre estiveram presentes na
vida e na obra do escritor. Tolstói viveu em busca de uma virgindade do mundo, obcecado
por uma idéia de pureza em
oposição à violência, à injustiça
e à corrupção da sociedade.
E isso podia se manifestar tanto na militância pedagógica posta em prática com os filhos dos
camponeses de sua propriedade
como no repúdio à hipocrisia e
às convenções das instituições
eclesiásticas (em nome de princípios cristãos originais, como o
amor ao próximo), o que bastou
para a sua excomunhão pela
igreja ortodoxa em 1901.
"Padre Sérgio" conta a história
de Stiepan Kassatski, um comandante exemplar da elite do
Exército russo (embora psiquicamente atormentado, como se
há de constatar) que abdica de
tudo para se tornar monge, recolhido aos confins da natureza,
evitando todo contato social,
mas sobretudo feminino.
Kassatski tem razões de sobra
para tanto. Não sendo rico nem
da corte, adotou como princípio
de vida ser o melhor em tudo,
superar-se sempre, para ser
aceito. Mas acabou caindo na
armadilha da sua própria tática.
Sua determinação arrivista o
levou a se aproximar de uma senhora da corte por quem de fato
se apaixona antes de pedi-la em
casamento. O pobre comandante é, no entanto, o único a não
saber que a dama em questão foi
amante do czar, a quem ele jurou servir com a própria vida.
Nada pior para quem está determinado a ser o melhor em tudo do que descobrir o trouxa
que é. E é muito menos por algum chamado da fé do que por
orgulho (por vergonha e humilhação) que o comandante abdica de todas as suas ambições sociais e se retira para um mosteiro. O motivo da fé é uma impostura análoga ao arrivismo do
protagonista.
Todo o problema moral da
novela está na oposição entre viver por uma convicção interior
(para Deus) e viver para a aprovação dos outros (para os homens, para as convenções).
Ao buscar o recolhimento monástico, porém, o Padre Sérgio
não está à procura de si mesmo,
mas antes tentando desesperadamente escapar de si, esquecer-se de si, não ver o que é. A alteridade é o espelho que o obriga
a ver-se, ela é a humilhação de
que fugiu, o testemunho não da
sua pretensa superioridade, mas
da sua dependência dos olhares
dos outros.
Desse ponto de vista, o desejo
passa a ser o maior inimigo do
eremita: ao mesmo tempo que o
impele de volta para os outros, é
o que revela o mais profundo de
si mesmo, aquilo que o padre
não pode conter e de que não
pode escapar. É assim que as
mulheres passam a ser a encarnação do demônio.
É difícil não ver nessa misoginia desesperada algum tipo de
humor negro (ainda que inconsciente) e não rir da tragicomédia de algumas passagens. A
mais célebre e mais patética de
todas é quando uma mulher de
sociedade, conhecendo a fama
do Padre Sérgio, faz uma aposta
entre amigos e sobe ao retiro do
monge para tentá-lo com a sua
simples presença, não deixando
outra opção ao pobre homem
além da autoflagelação.
Seu isolamento, em vez de
conduzi-lo a si mesmo e a Deus,
faz dele um santo aos olhos dos
outros, e ele passa a agir conforme as novas prerrogativas, mais
uma vez dependente do que esperam de si. Na ambiguidade
dessa parábola, ao mesmo tempo em que denuncia a corrupção da sociedade, a novela acaba
mostrando que não há como livrar-se dos outros, porque isso
significaria livrar-se de si.
O Padre Sérgio parte do pressuposto de que o inferno são os
outros apenas para descobrir
que o inferno é ele mesmo. Encontrar Deus na pureza de um
retiro espiritual passa a ser, nesse caso, uma impossibilidade
que só se resolve na alucinação.
Padre Sérgio
Otiéts Sierguêi
Autor: Leon Tolstói
Tradução: Beatriz Morabito
Editora: Cosac & Naify
Quanto: preço a definir (124 págs.)
Texto Anterior: "Dancing Brasil": Crônicas mapeiam vôos de repórter Próximo Texto: Panorâmica - Clássicos: Coleção francesa está à venda em SP Índice
|