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LITERATURA
Escritor mudou seu testamento oito meses antes de morrer, deixando de lado 39 anos de dedicação
Governanta ignorada relembra Borges
ANDRÉ SOLIANI
de Buenos Aires
Oito meses antes de morrer,
Jorge Luis Borges modificou seu
testamento e a sorte de sua governanta, Epifanía Uveda, que cuidou dele por 39 anos. Em dezembro de 1985, Fanny, apelido de
Uveda, deixou de ser uma das
herdeiras do escritor argentino.
María Kodama, com quem Borges se casou 45 dias antes de morrer, em Genebra, passou a ser a
única beneficiária do testamento.
No final de 1986, cinco meses
após a morte do escritor, Fanny
foi expulsa por Kodama do apartamento que seria seu, de acordo
com o primeiro testamento.
Há três anos, a caminho de ir
morar numa favela, Fanny resolveu vender um par de sapatinhos
do seu ex-patrão, o último objeto
que possuía do consagrado autor.
Alejandro Vaccaro, biógrafo de
Borges, se inteirou da situação e
resolveu ajudá-la, emprestando
uma casa para ela morar.
No final da semana passada,
Fanny recebeu a Folha, em sua
casa, onde também funciona a sede de uma agrupação política do
clube de futebol Boca Juniors.
Hoje, aos 77 anos, a governanta
do autor de "Ficções" guarda, da
época em que cuidou de Borges,
apenas fotos e as histórias da intimidade de um dos maiores escritores do século.
Ajudante de cozinha
Fanny foi contratada pela mãe
de Borges, Leonor Acevedo de
Borges, como ajudante da cozinheira, que logo em seguida se
aposentou. Depois da morte da
senhora Borges, com quem o escritor cego viveu toda a vida,
Fanny passou a cuidar da casa e
do próprio escritor.
Foi também depois da morte da
senhora Borges, aos 99 anos, em
1975, que Kodama se aproximou
de Borges.
"Kodama substituiu a mãe
morta e passou a ser a secretária e
companheira de viagem de Jorge", diz Vaccaro.
Fanny conta que Borges costumava perguntar como era Kodama.
"Não é feia, tampouco bonita",
respondia a governanta, que lhe
emprestava os olhos.
"Borges dizia que estava enfeitiçado por ela", conta Fanny, que
sustenta que escritor não queria ir
para Genebra, antes de morrer.
Em novembro de 1985, Kodama
foi buscar Borges para levá-lo para Suíça. Fanny conta que naquele
dia encontrou Borges abraçado à
cama choramingado: "Fanny, eu
não quero ir, porque se for, vou
morrer lá".
Menos de um ano depois, Borges morria em Genebra. Mas antes se casou com Kodama por
meio de uma procuração, no Paraguai.
"Casar com Kodama foi um
agradecimento pelos anos de dedicação", especula Vaccaro, que
afirma que o casamento interessava sobretudo a Kodama.
Fanny faz questão de afirmar
que a relação de Borges e Kodama
não era a de um casal. "Outro dia
li que eles eram amantes, mentira", diz Fanny. Segundo a governanta, Kodama nunca dormiu ou
sequer almoçou no apartamento
da rua Maipú. "Ela vinha duas ou
três vezes por semana, durante a
tarde. Eu lhe servia coca-cola,
com bolachas", conta.
A governanta era também responsável por receber as pessoas
que tinham entrevistas com Borges.
Uma vez, Fanny afirma, umas
estudantes brasileiras pediram
para conversar com seu chefe.
Depois que elas saíram, Borges
perguntou como elas eram.
"Umas negrinhas lindas", respondeu Fanny. "Por que não me
disse que eram negras? Não as teria recebido", bradou Borges, revelando seu preconceito.
Fanny afirma que "Borges era
um bebê e um pai".
Era a governanta quem preparava o banho, vestia a roupa e dava de comer a Borges. Na hora de
dormir não faltavam mimos.
"Antes de se deitar, ele sempre estendia a mão e eu lhe entregava
duas balas."
Fanny não foi imortalizada na
obra de Borges, como Kodama,
diz Vaccaro. Mas o gato de sua filha, Beppo, está presente em várias passagens. "Quando o senhor
(Borges) tirava uma soneca à tarde, Beppo se deitava ao seu lado",
lembra Fanny. No dia em que o
gato morreu, Borges entrou na
cozinha, alucinado: "Fanny, tem
duas mulheres na sala querendo
me matar".
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