São Paulo, Quarta-feira, 25 de Agosto de 1999
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LITERATURA
Escritor mudou seu testamento oito meses antes de morrer, deixando de lado 39 anos de dedicação
Governanta ignorada relembra Borges

ANDRÉ SOLIANI
de Buenos Aires

Oito meses antes de morrer, Jorge Luis Borges modificou seu testamento e a sorte de sua governanta, Epifanía Uveda, que cuidou dele por 39 anos. Em dezembro de 1985, Fanny, apelido de Uveda, deixou de ser uma das herdeiras do escritor argentino. María Kodama, com quem Borges se casou 45 dias antes de morrer, em Genebra, passou a ser a única beneficiária do testamento.
No final de 1986, cinco meses após a morte do escritor, Fanny foi expulsa por Kodama do apartamento que seria seu, de acordo com o primeiro testamento.
Há três anos, a caminho de ir morar numa favela, Fanny resolveu vender um par de sapatinhos do seu ex-patrão, o último objeto que possuía do consagrado autor. Alejandro Vaccaro, biógrafo de Borges, se inteirou da situação e resolveu ajudá-la, emprestando uma casa para ela morar.
No final da semana passada, Fanny recebeu a Folha, em sua casa, onde também funciona a sede de uma agrupação política do clube de futebol Boca Juniors.
Hoje, aos 77 anos, a governanta do autor de "Ficções" guarda, da época em que cuidou de Borges, apenas fotos e as histórias da intimidade de um dos maiores escritores do século.

Ajudante de cozinha
Fanny foi contratada pela mãe de Borges, Leonor Acevedo de Borges, como ajudante da cozinheira, que logo em seguida se aposentou. Depois da morte da senhora Borges, com quem o escritor cego viveu toda a vida, Fanny passou a cuidar da casa e do próprio escritor.
Foi também depois da morte da senhora Borges, aos 99 anos, em 1975, que Kodama se aproximou de Borges.
"Kodama substituiu a mãe morta e passou a ser a secretária e companheira de viagem de Jorge", diz Vaccaro.
Fanny conta que Borges costumava perguntar como era Kodama.
"Não é feia, tampouco bonita", respondia a governanta, que lhe emprestava os olhos.
"Borges dizia que estava enfeitiçado por ela", conta Fanny, que sustenta que escritor não queria ir para Genebra, antes de morrer.
Em novembro de 1985, Kodama foi buscar Borges para levá-lo para Suíça. Fanny conta que naquele dia encontrou Borges abraçado à cama choramingado: "Fanny, eu não quero ir, porque se for, vou morrer lá".
Menos de um ano depois, Borges morria em Genebra. Mas antes se casou com Kodama por meio de uma procuração, no Paraguai.
"Casar com Kodama foi um agradecimento pelos anos de dedicação", especula Vaccaro, que afirma que o casamento interessava sobretudo a Kodama.
Fanny faz questão de afirmar que a relação de Borges e Kodama não era a de um casal. "Outro dia li que eles eram amantes, mentira", diz Fanny. Segundo a governanta, Kodama nunca dormiu ou sequer almoçou no apartamento da rua Maipú. "Ela vinha duas ou três vezes por semana, durante a tarde. Eu lhe servia coca-cola, com bolachas", conta.
A governanta era também responsável por receber as pessoas que tinham entrevistas com Borges.
Uma vez, Fanny afirma, umas estudantes brasileiras pediram para conversar com seu chefe. Depois que elas saíram, Borges perguntou como elas eram. "Umas negrinhas lindas", respondeu Fanny. "Por que não me disse que eram negras? Não as teria recebido", bradou Borges, revelando seu preconceito.
Fanny afirma que "Borges era um bebê e um pai".
Era a governanta quem preparava o banho, vestia a roupa e dava de comer a Borges. Na hora de dormir não faltavam mimos. "Antes de se deitar, ele sempre estendia a mão e eu lhe entregava duas balas."
Fanny não foi imortalizada na obra de Borges, como Kodama, diz Vaccaro. Mas o gato de sua filha, Beppo, está presente em várias passagens. "Quando o senhor (Borges) tirava uma soneca à tarde, Beppo se deitava ao seu lado", lembra Fanny. No dia em que o gato morreu, Borges entrou na cozinha, alucinado: "Fanny, tem duas mulheres na sala querendo me matar".


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