São Paulo, quinta, 25 de setembro de 1997.



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O guia de Tio Dave para repórteres da Internet

DAVID DREW ZINGG
lá fora, na Internet

"Nenhuma notícia é preferível."Fran Lebowitz
A velha e desagradável Internet me chamou outra vez.
Se você anda lendo os jornais ou assistindo a nossa televisão de orientação cívica, saberá que a polícia identificou um Web site carregado, segundo ela, de imagens ilegais ligadas à pedofilia.
Há um fluxo constante de notícias na imprensa sobre um aspecto geralmente insignificante da World Wide Web (conhecida entre usuários frustrados como "World Wide Wait", ou "espera mundial" em lugar de "rede mundial"): a disponibilidade de imagens e informações de conteúdo erótico via computador.
A razão disso é que a "maligna" Internet é um dos temas mais quentes disponíveis hoje em dia.
Parece que não importa aos repórteres que uma parcela importante do conhecimento acumulado do mundo se encontre aí fora, na Internet, à livre disposição de qualquer cidadão.
"À livre disposição", isto é, de qualquer cidadão que tenha um computador disponível. A questão de quem tem acesso a computadores na Bananalândia é um tema que poderemos discutir em algum outro momento.
As pessoas esquentam a cabeça quando falam sobre a irreverente Internet. Perde-se a calma, os políticos fazem discursos solenes (e têm suas fotos publicadas). Apontam-se dedos acusatórios.
Em suma, histórias sobre os perigos que se escondem on line figuram entre os primeiros lugares na lista de temas prioritários de editores e repórteres. A cobertura da Internet é "in".
Tio Dave compilou um documento que pretende servir de guia para seus colegas da imprensa, para ajudá-los na cobertura que fazem da tentadora, ameaçadora, decadente Internet.
Tio Dave criou o primeiro Guia de Cobertura Jornalística da Internet, para familiarizar os repórteres com certas convenções editoriais que devem ser observadas quando se cobre qualquer assunto relativo à Internet.
Você ficará espantado, Joãozinho, quando perceber como é tudo muito simples, na realidade.
Porque a Internet é divertida
A Internet oferece um tema fascinante para o repórter que sabe discernir as coisas. Não há necessidade de sair para o mundo real e fazer trabalhos cansativos, tipo pesquisas.
O repórter esperto tem sua chance de cobrir um tema "quente", e a mensagem é tão simples que até um político é capaz de compreendê-la, ou, pelo menos, tirar alguma vantagem política dela.
Todas as matérias sobre a Internet que interessam ao editor se baseiam em um fato muito simples:
"A Internet é um artefato de alta tecnologia, complicado e difícil de entender. Seu único objetivo é colocar pornografia e receitas de fabricação de bombas nas mãos de crianças revolucionárias, babando por tudo isso."
Quando você, repórter, fazia escola de jornalismo, aprendeu que sexo vende. Esse cânone básico lhe oferece uma desculpa para mostrar fotos de mulheres peladas (só para mostrar o que se encontra disponível, é claro), ao mesmo tempo que conserva um elevado tom moral.
Existe na Internet uma área de comunicação amplamente utilizada pelas pessoas para bater papo e buscar informações. É conhecida como Usenet.
Se você é jornalista, a Usenet é um rico campo de material aparentemente chocante. Você pode fazer da pornografia o tema principal de sua matéria, escolhendo um grupo da Usenet que contenha a palavra "sexo" em seu título.
É claro que o grupo em questão pode ser um serviço social respeitável que trata de sexo seguro, ou um serviço de aconselhamento a vítimas de abuso sexual -mas, se tiver "sexo" no nome, só pode ser sacanagem.
Ignore o fato de que há mais de 11 mil áreas de interesse disponíveis na Usenet.
Ou será que alguém leria uma matéria sobre pessoas que batem papo sobre livros, cinema, arte, saúde, assuntos financeiros, atualidades ou religião?
Concentre-se no tema que atrai os leitores. Volte sua atenção à pornografia.

Os especialistas
Enquanto jornalista bem informado que escreve sobre a Internet, você vale apenas o que valem suas fontes.
Para fundamentar suas posições, tem que criar um grupo de autoproclamados especialistas, que você deve consultar com frequência.
Você precisa contar com a ajuda dos assessores educacionais certos ("Só brinquedos naturais de madeira produzidos por índios do Amazonas vão impedir seu filho de se tornar um maníaco homicida").
Também são fundamentais os conselhos de um psicólogo de renome nacional ("A influência difusa e onipresente do contato constante com a alta tecnologia produz solidão interior. Nossas habilidades comunicativas interpessoais vêm se deteriorando constantemente há diversas gerações, desde a invenção do telefone").
Um dos componentes básicos do painel de especialistas cujos conselhos podem ser citados pelo bom repórter é feito, obviamente, de especialistas da área policial ("Não temos idéia de quem fez, como ou quando fez -mas sabemos que pegaram suas informações da Internet").
É de importância crucial que, graças às informações fundamentadas de seus assessores, o leitor/telespectador tenha expectativas preconcebidas e já prontas em relação a qualquer artigo referente à Internet.
O joelho do leitor fiel deve pular, num movimento reflexo, ao som da temível palavra "Internet". Sua mente deve estremecer imediatamente ao antecipar o que ele sabe que deve ser a pauta -os perigos daquele misto pavoroso de computadores, pedófilos pornográficos e explosivos de alta potência (levados às salas de aula do jardim de infância escondidos dentro das lancheiras dos aluninhos).

Avisos ao Repórter
Como em todas as matérias jornalísticas que rendem, existem algumas armadilhas que o repórter cauteloso fará bem em evitar:
1) Nunca informe o leitor da riqueza de informações gerais que está disponível na Internet, virtualmente de graça.
Manipulando as emoções dos leitores por meio do choque, do descrédito e da repulsa, você pode garantir que poucos deles cheguem a ver em primeira mão toda a riqueza de informações que a Internet põe à sua disposição.
2) Nunca mencione o fato de que praticamente tudo e todos de importância estão on line, a começar por este jornal e pelo extraordinário provedor Universo Online, o maior Web site na língua portuguesa.
Se o leitor se desse conta de quão vasta é a gama de informações disponíveis, a imagem que tem da Internet escandalosa seria destruída para sempre.
3) Jamais aluda ao fato de que na Web não há intervalos para comerciais (tais como os conhecemos na TV e na rádio) nem censura de qualquer espécie.
Os patrocinadores da televisão trabalham duro para fazer da experiência televisiva um fluxo quase contínuo de marketing, interrompido apenas de vez em quando por breves flashes de programação.
Se as pessoas descobrirem que podem desfrutar de tudo que a Internet tem a lhes oferecer por horas a fio sem terem o prazer de assistir a um único comercial de artigos de uso feminino, sua emissora de TV (logo, seu emprego de "repórter") vai enfrentar sérios problemas.



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