São Paulo, sexta, 25 de setembro de 1998

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"Caráter" segue esquisitice holandesa

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Os méritos de "Caráter" são infinitamente maiores que os de "A Excêntrica Família de Antonia", outro filme holandês que derrotou um brasileiro na disputa do Oscar de melhor filme estrangeiro (o primeiro, bateu "O Quatrilho", em 1995; o segundo, "O Que É Isso, Companheiro", em 1997).
Se "Antonia" baixava todo o repertório habitual do chamado "filme de arte" (começando pelo apelo feminista), "Caráter" contenta-se em, seguindo a tradição holandesa em matéria de cinema, ser antes de tudo um filme esquisito.
A história trata das relações entre um homem de poucas palavras (a julgar pelo filme, não mais de uma dúzia ao longo da vida), o oficial de justiça Dreverhaven (Jan Decleir), e seu filho, Katadreuffe.
Este é filho de uma única (e silenciosa) relação sexual de Dreverhaven com a mãe. Ao saber que está grávida, ela (outra silenciosa renitente) retira-se da vida do oficial de justiça para sempre.
O jovem Katadreuffe cresce na pobreza, por vezes na humilhação. Quando escapa a essa sina, o pai trata de mover-lhe perseguições infames (não raro, anonimamente).
Um parêntese para explicar que Dreverhaven é conhecido por sua rudeza, sobretudo em relação aos pobres cujos despejos é encarregado de executar (estamos em Roterdã, entre os anos 20 e 30).
Dreverhaven é a lei. Não está lá para falar, nem para discutir, mas para executar. Desconhece sentimentos.
Do ponto de vista psicanalítico é um prato cheio, já que o pai é a representação da lei e, no caso de Katadreuffe, de maneira radical: o pai é alguém que cresceu sem ver, que mesmo na idade adulta raramente encontra, mas ainda assim tem de carregar seu peso, penosamente, ao longo da vida.
Livrar-se da lei, derrotar o pai, será sua obsessão permanente. Temos até aí uma história de Édipo que poderia ter saído de uma página de Freud, se a ênfase da história fosse para o caráter neurótico do personagem.
Com bom senso, o diretor Mike Van Diem evita a armadilha do freudismo explícito para centrar fogo na difícil construção da personalidade do jovem Katadreuffe, forjada ao longo de um sem-número de privações.
Em troca, dá ao filme algo que agrada aos norte-americanos: uma afirmação de individualidade, num meio hostil. Nesse sentido, se remete aos romances de Charles Dickens, "Caráter" não deixa de evocar sobretudo velhos faroestes clássicos, em que os defeitos e qualidades pessoais deviam ser absorvidos pelo valor do personagem.
Não deixará de passar desapercebida ao espectador a existência de uma grande renúncia na vida do jovem herói (renúncia à mulher amada), o que é quase um clichê do faroeste.
Também será impossível ao espectador brasileiro não lembrar de um personagem emblemático da obra de Glauber Rocha, Antônio das Mortes (o matador surgido em "Deus e o Diabo na Terra do Sol"). O ótimo Jan Decleir parece construir seu Dreverhaven à imagem, semelhança e crueldade do personagem de Glauber.
É na hábil reciclagem de figuras e situações clássicas, no mais, que se podem encontrar os principais pontos de interesse de "Caráter". Ao contrário de seu personagem Katadreuffe, o diretor Van Diem não parece tão empenhado, afinal, em eliminar as figuras tutelares. Nesse sentido, não lhe falta bom senso.
²
Filme: Caráter Produção: Holanda, 1997, 119 min Direção: Mike Van Diem Com: Fedja Van Huet, Jan Decleir e Betty Schuurman Quando: a partir de hoje, no Belas Artes e circuito


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