|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Caráter" segue esquisitice holandesa
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Os méritos de "Caráter" são infinitamente maiores que os de "A
Excêntrica Família de Antonia",
outro filme holandês que derrotou
um brasileiro na disputa do Oscar
de melhor filme estrangeiro (o primeiro, bateu "O Quatrilho", em
1995; o segundo, "O Que É Isso,
Companheiro", em 1997).
Se "Antonia" baixava todo o repertório habitual do chamado "filme de arte" (começando pelo apelo feminista), "Caráter" contenta-se em, seguindo a tradição holandesa em matéria de cinema, ser antes de tudo um filme esquisito.
A história trata das relações entre
um homem de poucas palavras (a
julgar pelo filme, não mais de uma
dúzia ao longo da vida), o oficial de
justiça Dreverhaven (Jan Decleir),
e seu filho, Katadreuffe.
Este é filho de uma única (e silenciosa) relação sexual de Dreverhaven com a mãe. Ao saber que está
grávida, ela (outra silenciosa renitente) retira-se da vida do oficial de
justiça para sempre.
O jovem Katadreuffe cresce na
pobreza, por vezes na humilhação.
Quando escapa a essa sina, o pai
trata de mover-lhe perseguições
infames (não raro, anonimamente).
Um parêntese para explicar que
Dreverhaven é conhecido por sua
rudeza, sobretudo em relação aos
pobres cujos despejos é encarregado de executar (estamos em Roterdã, entre os anos 20 e 30).
Dreverhaven é a lei. Não está lá
para falar, nem para discutir, mas
para executar. Desconhece sentimentos.
Do ponto de vista psicanalítico é
um prato cheio, já que o pai é a representação da lei e, no caso de Katadreuffe, de maneira radical: o pai
é alguém que cresceu sem ver, que
mesmo na idade adulta raramente
encontra, mas ainda assim tem de
carregar seu peso, penosamente,
ao longo da vida.
Livrar-se da lei, derrotar o pai,
será sua obsessão permanente. Temos até aí uma história de Édipo
que poderia ter saído de uma página de Freud, se a ênfase da história
fosse para o caráter neurótico do
personagem.
Com bom senso, o diretor Mike
Van Diem evita a armadilha do
freudismo explícito para centrar
fogo na difícil construção da personalidade do jovem Katadreuffe,
forjada ao longo de um sem-número de privações.
Em troca, dá ao filme algo que
agrada aos norte-americanos: uma
afirmação de individualidade,
num meio hostil. Nesse sentido, se
remete aos romances de Charles
Dickens, "Caráter" não deixa de
evocar sobretudo velhos faroestes
clássicos, em que os defeitos e qualidades pessoais deviam ser absorvidos pelo valor do personagem.
Não deixará de passar desapercebida ao espectador a existência de
uma grande renúncia na vida do
jovem herói (renúncia à mulher
amada), o que é quase um clichê do
faroeste.
Também será impossível ao espectador brasileiro não lembrar de
um personagem emblemático da
obra de Glauber Rocha, Antônio
das Mortes (o matador surgido em
"Deus e o Diabo na Terra do Sol").
O ótimo Jan Decleir parece construir seu Dreverhaven à imagem,
semelhança e crueldade do personagem de Glauber.
É na hábil reciclagem de figuras e
situações clássicas, no mais, que se
podem encontrar os principais
pontos de interesse de "Caráter".
Ao contrário de seu personagem
Katadreuffe, o diretor Van Diem
não parece tão empenhado, afinal,
em eliminar as figuras tutelares.
Nesse sentido, não lhe falta bom
senso.
²
Filme: Caráter
Produção: Holanda, 1997, 119 min
Direção: Mike Van Diem
Com: Fedja Van Huet, Jan Decleir e Betty
Schuurman
Quando: a partir de hoje, no Belas Artes e
circuito
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|