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FERNANDO GABEIRA
"O Primeiro Dia" é milênio que chega armado
Vi o excelente filme de Daniela
Thomas e Walter Salles -"O Primeiro Dia". Tenho escrúpulos ao
escrever sobre filmes, como teria
ao transpor um livro para o cinema. São linguagens diferentes e,
ao transitar de uma para outra,
você acaba traduzindo e, em certa
medida, traindo. Espero pelo menos que, no final, reconheçamos
que estamos falando da mesma
coisa, embora não seja proibido,
simplesmente, divagar a partir de
um filme.
Após o término do filme, um
quadro me impressionou na tela.
É o selo dos patrocinadores, um
comitê para celebrar o ano 2000.
Pensei: "Convidaram os artistas
para celebrar o ano 2000 e eles
trouxeram uma dose de realidade
e crítica social que tornam a comemoração um pouco ingênua".
Mas artista é isso mesmo. Às vezes
você encomenda pensando numa
coisa, eles vêm com outra diferente e você acaba achando que eles
têm razão.
"O Primeiro Dia" (que a Folha,
o Espaço Unibanco de Cinema e a
23ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibem hoje,
às 21h, no Espaço Unibanco/SP) é
uma passagem para o ano 2000
que já vem com uma espécie de
bug do milênio embutida nela.
Um "treisoitão" e sua bala atravessam a noite do réveillon, destruindo a ilusão de que tudo vai
zerar. O ano começa com mais
um morto, lembrando que a violência urbana no Brasil é uma
realidade que os foguetes e o tilintar de taças não conseguem apagar. Nesse sentido o filme é exato,
porque a crise social continua, varando os séculos, sobretudo porque a crise social e um dos seus
componentes mais mórbidos, o
desemprego, prosseguem.
E agora o tipo de desemprego
tem características novas.
Como lembrou num artigo na
Folha o economista Gilberto Dupas, não é mais aquele desemprego temporário, em que você se alimenta da esperança de que o pesadelo vai passar. É um desemprego de gente que já teve um salário
razoável, tornando-se com ele
mais desorientada do que os excluídos de antigamente.
Creio que, um dia, terei mais espaço para falar do filme. Posso me
dar o luxo agora de tratar de alguns detalhes. A visão da favela,
por exemplo, com suas vielas estreitas e imprevisíveis, ao contrário das ruas aqui de baixo, cartesianamente projetadas.
Nos becos do morro entramos
num imprevisível labirinto, o caminho pode, de repente, se estreitar ou mesmo desaparecer, para
ser retomado adiante.
Vi o filme no momento em que
lia um romance sobre a morte de
Walter Benjamin. O trabalho teórico de sua vida se concentrou
num ensaio sobre as arcadas de
Paris. Tinham para ele também
esse caráter imprevisível, a ponto
de lembrar o labirinto grego e seus
significados simbólicos -esse
mergulho no desconhecido, nas
profundezas da vida interior.
Na concepção de Benjamin as
arcadas com suas butiques expressavam apenas a trajetória
avassaladora do capitalismo e do
consumo. As favelas expressam a
exclusão, o subconsumo, ausência
do poder estatal.
Gostaria apenas de alinhar alguns tópicos aos quais voltarei
um dia -vielas por meio das
quais talvez possa traduzir o impacto deste filme. Os diálogos, por
exemplo, nos levam também a
um mundo imprevisível e tenso.
São um acontecimento na dramaturgia brasileira. Como foram
os de Nelson Rodrigues, que hoje
nos trazem uma certa nostalgia,
com seus nomes e expressões datadas. Comparar os dois é sentir o
dinamismo da língua brasileira e
constatar que a violência colou
nela, como sua segunda pele.
A presença da religião como janela para um mundo melhor é
sentida até pelos bandidos, que se
tornam evangélicos ou pensam
em se tornar. É que, em certas trajetórias, a vida é tão dura, como
na do personagem interpretado
por Matheus Nachtergaele, que a
iluminação religiosa seduz, mas
não convence, porque é de uma
ingenuidade comovente.
A esperança e o mito do renascimento estão presentes no filme. O
velho que acredita que tudo vai
mudar com a passagem de ano
(vai zerar tudo, dizia ele) renasce
em João que, por sua vez, renasce
em Maria, a mulher que ele, antes
de ser assassinado, salva do suicídio na noite do réveillon.
Maria se batiza nas águas do
mar. Com vela que sobrou no culto a Iemanjá e a flor que a onda
devolveu à praia, ela demarca o
corpo do namorado morto. A vida
recomeça, mas a paisagem urbana sobrevive com suas fixações
-um corpo estendido, uma vela,
uma flor. Foi isso que vi em Vigário Geral, horas depois daquela
grande chacina. É isso que vemos
nos becos do Brasil.
Como dizia o poeta, o último
dia do ano não é o último dia da
vida. Entrar no ano 2000 com esse
filme e seu agudo senso de urgência depura nossas esperanças. Flores para os mortos, bola para frente, avança Brasil. Para onde, Brasil ?
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