São Paulo, Segunda-feira, 25 de Outubro de 1999
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FERNANDO GABEIRA

"O Primeiro Dia" é milênio que chega armado

Vi o excelente filme de Daniela Thomas e Walter Salles -"O Primeiro Dia". Tenho escrúpulos ao escrever sobre filmes, como teria ao transpor um livro para o cinema. São linguagens diferentes e, ao transitar de uma para outra, você acaba traduzindo e, em certa medida, traindo. Espero pelo menos que, no final, reconheçamos que estamos falando da mesma coisa, embora não seja proibido, simplesmente, divagar a partir de um filme.
Após o término do filme, um quadro me impressionou na tela. É o selo dos patrocinadores, um comitê para celebrar o ano 2000. Pensei: "Convidaram os artistas para celebrar o ano 2000 e eles trouxeram uma dose de realidade e crítica social que tornam a comemoração um pouco ingênua". Mas artista é isso mesmo. Às vezes você encomenda pensando numa coisa, eles vêm com outra diferente e você acaba achando que eles têm razão.
"O Primeiro Dia" (que a Folha, o Espaço Unibanco de Cinema e a 23ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo exibem hoje, às 21h, no Espaço Unibanco/SP) é uma passagem para o ano 2000 que já vem com uma espécie de bug do milênio embutida nela. Um "treisoitão" e sua bala atravessam a noite do réveillon, destruindo a ilusão de que tudo vai zerar. O ano começa com mais um morto, lembrando que a violência urbana no Brasil é uma realidade que os foguetes e o tilintar de taças não conseguem apagar. Nesse sentido o filme é exato, porque a crise social continua, varando os séculos, sobretudo porque a crise social e um dos seus componentes mais mórbidos, o desemprego, prosseguem.
E agora o tipo de desemprego tem características novas.
Como lembrou num artigo na Folha o economista Gilberto Dupas, não é mais aquele desemprego temporário, em que você se alimenta da esperança de que o pesadelo vai passar. É um desemprego de gente que já teve um salário razoável, tornando-se com ele mais desorientada do que os excluídos de antigamente.
Creio que, um dia, terei mais espaço para falar do filme. Posso me dar o luxo agora de tratar de alguns detalhes. A visão da favela, por exemplo, com suas vielas estreitas e imprevisíveis, ao contrário das ruas aqui de baixo, cartesianamente projetadas.
Nos becos do morro entramos num imprevisível labirinto, o caminho pode, de repente, se estreitar ou mesmo desaparecer, para ser retomado adiante.
Vi o filme no momento em que lia um romance sobre a morte de Walter Benjamin. O trabalho teórico de sua vida se concentrou num ensaio sobre as arcadas de Paris. Tinham para ele também esse caráter imprevisível, a ponto de lembrar o labirinto grego e seus significados simbólicos -esse mergulho no desconhecido, nas profundezas da vida interior.
Na concepção de Benjamin as arcadas com suas butiques expressavam apenas a trajetória avassaladora do capitalismo e do consumo. As favelas expressam a exclusão, o subconsumo, ausência do poder estatal.
Gostaria apenas de alinhar alguns tópicos aos quais voltarei um dia -vielas por meio das quais talvez possa traduzir o impacto deste filme. Os diálogos, por exemplo, nos levam também a um mundo imprevisível e tenso. São um acontecimento na dramaturgia brasileira. Como foram os de Nelson Rodrigues, que hoje nos trazem uma certa nostalgia, com seus nomes e expressões datadas. Comparar os dois é sentir o dinamismo da língua brasileira e constatar que a violência colou nela, como sua segunda pele.
A presença da religião como janela para um mundo melhor é sentida até pelos bandidos, que se tornam evangélicos ou pensam em se tornar. É que, em certas trajetórias, a vida é tão dura, como na do personagem interpretado por Matheus Nachtergaele, que a iluminação religiosa seduz, mas não convence, porque é de uma ingenuidade comovente.
A esperança e o mito do renascimento estão presentes no filme. O velho que acredita que tudo vai mudar com a passagem de ano (vai zerar tudo, dizia ele) renasce em João que, por sua vez, renasce em Maria, a mulher que ele, antes de ser assassinado, salva do suicídio na noite do réveillon.
Maria se batiza nas águas do mar. Com vela que sobrou no culto a Iemanjá e a flor que a onda devolveu à praia, ela demarca o corpo do namorado morto. A vida recomeça, mas a paisagem urbana sobrevive com suas fixações -um corpo estendido, uma vela, uma flor. Foi isso que vi em Vigário Geral, horas depois daquela grande chacina. É isso que vemos nos becos do Brasil.
Como dizia o poeta, o último dia do ano não é o último dia da vida. Entrar no ano 2000 com esse filme e seu agudo senso de urgência depura nossas esperanças. Flores para os mortos, bola para frente, avança Brasil. Para onde, Brasil ?


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