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Do ofício de perguntar ou pedaços de mim
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Lembrar não incomoda, esquadrinhar lembranças é que
complica. Mais fácil deixá-las
enroladas, vagas e, sobre elas,
elaborar explanações, em geral
amenas. O problema da memória -um dos principais
atributos da condição humana- é o desasossego que suscita. Daí a parcimônia do uso.
Duas publicações que chegaram às livrarias nesta semana
nos arremessam a um passado
recente e fazem de cada um de
nós pequenos museus, vivos e
falantes. Em estilos opostos
(um é testemunhal, outro é
científico), em âmbitos diferentes (um, incidental, é sobre
o Brasil, o outro, um mergulho
na Alemanha expandida pelo
nazismo), são, no entanto,
igualmente políticos. E arrasadores.
"Ernesto Geisel" é um longo
depoimento do ex-presidente,
falecido no ano passado, concedido a dois competentes historiadores da Fundação Getúlio Vargas, Maria Celina D'Araujo e Celso Castro.
Uma lição da nobre arte de
perguntar, hoje tão canhestramente usada, avança pela tênue fronteira entre jornalismo
e história, tema sobre o qual
deveriam se debruçar profissionais das duas áreas. Exemplo de esmero editorial oferecido por um selo acadêmico às
grandes casas publicadoras comerciais no tocante aos elementos extratexto: notas explicativas no pé da página, cronologia, material iconográfico
e índice remissivo, informações que perenizam qualquer
livro.
Em Brasília, a primeira remessa do depoimento de Geisel
logo esgotou-se graças ao tititi
provocado pela imprensa. A
capital federal é, na realidade,
matriz dessa cultura fofoqueira e frívola, que transbordou
das colunas sociais e hoje permeia o jornalismo, a política, a
vida empresarial e as relações
pessoais.
Todos querem saber o que o
reservado e rigoroso militar,
depois de tantos anos de silêncio, disse sobre alguns atores
que sobraram da ditadura e
hoje se movimentam na cena
contemporânea (Maluf, Sarney, Delfim Neto), sobre outros
já esquecidos (Figueiredo, Costa e Silva, sua mulher Yolanda, Mario Andreazza) e, sobretudo, sobre as disputas e ambições que alongaram os anos de
chumbo.
O que sobressai é o depoente
-austero, intransigente, coerente, artífice da penosa distensão "lenta, gradual e segura", à sombra da qual e à sua
revelia foram cometidas tantas
barbaridades. Narrador-protagonista de um dos períodos
mais negros da história do
país, estarrece a frieza com que
desvenda episódios lembrados
na outra ponta com tanto sofrimento.
Não há subjetividade, emoções, intensidades: o desapreço
jamais consegue chegar ao desprezo. Adversários assemelham-se, sejam da linha dura,
da oposição política ou armada -meros obstáculos a serem
vencidos, colinas a serem conquistadas na operação militar.
As duas grandes mágoas (a
morte do filho adolescente,
atropelado por um trem, e o
veto dos americanos à sua participação na expedição à Itália
por causa da ascendência germânica) parecem conservadas
em gelo. Cortantes.
Num país onde a exuberância tropicalista converteu-se
em sinônimo de patriotismo,
esse nacionalista tão álgido é
uma fascinante aberração. Pedaço de uma brasilidade diferente que não pode ser descartada. Impossível detestá-lo,
impossível admirá-lo. Como
um cirurgião que amputa pedaços vitais e, no entanto, nos
salva de coisa pior.
Cirúrgico na metodologia,
mas explosivo nas conclusões,
é Daniel Jonah Goldhagen, autor de "Os Carrascos Voluntários de Hitler" (Cia. das Letras), que causou grande impacto quando foi lançado nos
EUA, em março de 1996. Tese
de doutoramento em Harvard,
segue os paradigmas da boa
investigação acadêmica, que
vai buscar as fontes primárias
de informação e não se contenta com a manipulação intelectual, às vezes indevida, de trabalhos já publicados. Mais
uma vez, confronta-se a aproximação entre jornalismo e
história com a inevitável pergunta: por que não consegue a
mídia, com os formidáveis recursos de que dispõe, mobilizar-se para desvendar a grande pauta de mistérios e dúvidas deste século?
As conclusões de Goldhagen
são simples: o holocausto não
foi obra de meia dúzia de bestas isoladas e de alguns milhares de auxiliares que se curvaram às ordens superiores. Não
foi um espasmo irracional, um
acidente diabólico, mas um
processo lento de diabolização
e ódio, elaborado até por intelectuais e cultivado desde os
fins do século passado.
O "Willing Executioners" do
título original é mais tenebroso que o conceito de carrasco
voluntário -é adesão irrestrita. E não apenas do povo alemão, mas dos ucranianos, lituanos e outros, contaminados
pela mesma doutrinação no
resto da Europa.
O entusiasmo com que perpetraram massacres coletivos,
de mãos limpas ou por meio de
espancamentos horripilantes,
não foi resultado de arengas
dementes de seus líderes. O nazismo não é causa, mas conclusão. Hitler e Goebbels são
frutos e instrumentos da mesma animalização política a
que aderiram milhões de outros alemães e seus parceiros.
Alguns até bastante refinados,
com teorias sobre o gueto mental dos judeus.
Parte da controvérsia suscitada pelo livro está na armadilha da generalização -não
houve exceções? Todos os alemães foram da Gestapo, das SS
e dos batalhões policiais que
Goldhagen estuda tão minuciosamente?
Tão logo recebi a edição
americana, busquei no índice
remissivo o nome da cidade
onde nasceram meus pais
-Rovno, Ucrânia. Lá estava o
nome fatídico e os números
aterradores: 21 mil judeus eliminados em apenas dois dias,
7 e 8 de novembro de 1941, há
exatos 57 anos. O dado não é
novo. Quando fui à então
União Soviética, consegui que
me levassem à cidade que, na
ocasião, contava com 200 mil
habitantes.
Perguntei muito, todos sabiam que as execuções foram
em campo aberto, com participação popular, as vítimas inteiramente nuas no frio cortante do outono, diante de covas gigantescas feitas por elas
mesmas. Dessa maneira, perdi
avó paterna, tios dos dois lados, primos de vários graus.
Muito antes de Goldhagen,
descobri nos EUA outro livro,
"The Moses of Rovno" (O Moisés de Rovno, de Douglas Huneke, 1985), a história de Herman "Fritz" Graebe, engenheiro ferroviário alemão que servia em Rovno e conseguiu salvar algumas centenas de judeus da região. Teve a coragem
de participar do Tribunal de
Nuremberg, o único alemão
arrolado como testemunha da
acusação, o que lhe valeu o
rancor dos compatriotas. Foi
obrigado a emigrar com a família para os EUA.
Da mesma estirpe de Oskar
Schindler, um dos Dez Mil Justos de diferentes nacionalidades (inclusive portugueses) que
recusaram se acumpliciar à
bestialização.
Induzido por um oficial do
serviço de inteligência americano, intelectual de origem
alemã chamado Herman Marcuse, Graebe levou para Nuremberg, minuciosamente
contado, tudo o que se passou
em Rovno: 5.000 sobreviventes
do primeiro massacre foram liquidados durante a noite de 13
de julho de 1942, no gueto improvisado.
Graças a Goldhagen, Marcuse e Graebe, descobri onde estão aqueles pedaços de mim. O
que sobrou está aqui, esquadrinhando lembranças. E, talvez, incomodando -não é coisa que se faça num sábado, em
plena primavera.
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