São Paulo, sábado, 25 de outubro de 1997.




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Do ofício de perguntar ou pedaços de mim

ALBERTO DINES
Colunista da Folha

Lembrar não incomoda, esquadrinhar lembranças é que complica. Mais fácil deixá-las enroladas, vagas e, sobre elas, elaborar explanações, em geral amenas. O problema da memória -um dos principais atributos da condição humana- é o desasossego que suscita. Daí a parcimônia do uso.
Duas publicações que chegaram às livrarias nesta semana nos arremessam a um passado recente e fazem de cada um de nós pequenos museus, vivos e falantes. Em estilos opostos (um é testemunhal, outro é científico), em âmbitos diferentes (um, incidental, é sobre o Brasil, o outro, um mergulho na Alemanha expandida pelo nazismo), são, no entanto, igualmente políticos. E arrasadores.
"Ernesto Geisel" é um longo depoimento do ex-presidente, falecido no ano passado, concedido a dois competentes historiadores da Fundação Getúlio Vargas, Maria Celina D'Araujo e Celso Castro.
Uma lição da nobre arte de perguntar, hoje tão canhestramente usada, avança pela tênue fronteira entre jornalismo e história, tema sobre o qual deveriam se debruçar profissionais das duas áreas. Exemplo de esmero editorial oferecido por um selo acadêmico às grandes casas publicadoras comerciais no tocante aos elementos extratexto: notas explicativas no pé da página, cronologia, material iconográfico e índice remissivo, informações que perenizam qualquer livro.
Em Brasília, a primeira remessa do depoimento de Geisel logo esgotou-se graças ao tititi provocado pela imprensa. A capital federal é, na realidade, matriz dessa cultura fofoqueira e frívola, que transbordou das colunas sociais e hoje permeia o jornalismo, a política, a vida empresarial e as relações pessoais.
Todos querem saber o que o reservado e rigoroso militar, depois de tantos anos de silêncio, disse sobre alguns atores que sobraram da ditadura e hoje se movimentam na cena contemporânea (Maluf, Sarney, Delfim Neto), sobre outros já esquecidos (Figueiredo, Costa e Silva, sua mulher Yolanda, Mario Andreazza) e, sobretudo, sobre as disputas e ambições que alongaram os anos de chumbo.
O que sobressai é o depoente -austero, intransigente, coerente, artífice da penosa distensão "lenta, gradual e segura", à sombra da qual e à sua revelia foram cometidas tantas barbaridades. Narrador-protagonista de um dos períodos mais negros da história do país, estarrece a frieza com que desvenda episódios lembrados na outra ponta com tanto sofrimento.
Não há subjetividade, emoções, intensidades: o desapreço jamais consegue chegar ao desprezo. Adversários assemelham-se, sejam da linha dura, da oposição política ou armada -meros obstáculos a serem vencidos, colinas a serem conquistadas na operação militar. As duas grandes mágoas (a morte do filho adolescente, atropelado por um trem, e o veto dos americanos à sua participação na expedição à Itália por causa da ascendência germânica) parecem conservadas em gelo. Cortantes.
Num país onde a exuberância tropicalista converteu-se em sinônimo de patriotismo, esse nacionalista tão álgido é uma fascinante aberração. Pedaço de uma brasilidade diferente que não pode ser descartada. Impossível detestá-lo, impossível admirá-lo. Como um cirurgião que amputa pedaços vitais e, no entanto, nos salva de coisa pior.
Cirúrgico na metodologia, mas explosivo nas conclusões, é Daniel Jonah Goldhagen, autor de "Os Carrascos Voluntários de Hitler" (Cia. das Letras), que causou grande impacto quando foi lançado nos EUA, em março de 1996. Tese de doutoramento em Harvard, segue os paradigmas da boa investigação acadêmica, que vai buscar as fontes primárias de informação e não se contenta com a manipulação intelectual, às vezes indevida, de trabalhos já publicados. Mais uma vez, confronta-se a aproximação entre jornalismo e história com a inevitável pergunta: por que não consegue a mídia, com os formidáveis recursos de que dispõe, mobilizar-se para desvendar a grande pauta de mistérios e dúvidas deste século?
As conclusões de Goldhagen são simples: o holocausto não foi obra de meia dúzia de bestas isoladas e de alguns milhares de auxiliares que se curvaram às ordens superiores. Não foi um espasmo irracional, um acidente diabólico, mas um processo lento de diabolização e ódio, elaborado até por intelectuais e cultivado desde os fins do século passado.
O "Willing Executioners" do título original é mais tenebroso que o conceito de carrasco voluntário -é adesão irrestrita. E não apenas do povo alemão, mas dos ucranianos, lituanos e outros, contaminados pela mesma doutrinação no resto da Europa.
O entusiasmo com que perpetraram massacres coletivos, de mãos limpas ou por meio de espancamentos horripilantes, não foi resultado de arengas dementes de seus líderes. O nazismo não é causa, mas conclusão. Hitler e Goebbels são frutos e instrumentos da mesma animalização política a que aderiram milhões de outros alemães e seus parceiros. Alguns até bastante refinados, com teorias sobre o gueto mental dos judeus.
Parte da controvérsia suscitada pelo livro está na armadilha da generalização -não houve exceções? Todos os alemães foram da Gestapo, das SS e dos batalhões policiais que Goldhagen estuda tão minuciosamente?
Tão logo recebi a edição americana, busquei no índice remissivo o nome da cidade onde nasceram meus pais -Rovno, Ucrânia. Lá estava o nome fatídico e os números aterradores: 21 mil judeus eliminados em apenas dois dias, 7 e 8 de novembro de 1941, há exatos 57 anos. O dado não é novo. Quando fui à então União Soviética, consegui que me levassem à cidade que, na ocasião, contava com 200 mil habitantes.
Perguntei muito, todos sabiam que as execuções foram em campo aberto, com participação popular, as vítimas inteiramente nuas no frio cortante do outono, diante de covas gigantescas feitas por elas mesmas. Dessa maneira, perdi avó paterna, tios dos dois lados, primos de vários graus.
Muito antes de Goldhagen, descobri nos EUA outro livro, "The Moses of Rovno" (O Moisés de Rovno, de Douglas Huneke, 1985), a história de Herman "Fritz" Graebe, engenheiro ferroviário alemão que servia em Rovno e conseguiu salvar algumas centenas de judeus da região. Teve a coragem de participar do Tribunal de Nuremberg, o único alemão arrolado como testemunha da acusação, o que lhe valeu o rancor dos compatriotas. Foi obrigado a emigrar com a família para os EUA.
Da mesma estirpe de Oskar Schindler, um dos Dez Mil Justos de diferentes nacionalidades (inclusive portugueses) que recusaram se acumpliciar à bestialização.
Induzido por um oficial do serviço de inteligência americano, intelectual de origem alemã chamado Herman Marcuse, Graebe levou para Nuremberg, minuciosamente contado, tudo o que se passou em Rovno: 5.000 sobreviventes do primeiro massacre foram liquidados durante a noite de 13 de julho de 1942, no gueto improvisado.
Graças a Goldhagen, Marcuse e Graebe, descobri onde estão aqueles pedaços de mim. O que sobrou está aqui, esquadrinhando lembranças. E, talvez, incomodando -não é coisa que se faça num sábado, em plena primavera.



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