São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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Literatura eletro barroca

Pisco del Gaiso - 22.jun.92/Folha Imagem
A cantora e atriz Ingrid Caven, personagem do livro de Jean-Jacques Schuhl



"Ingrid Caven", romance do francês Jean-Jacques Schuhl, narra a vida da mulher, cantora e atriz alemã e conta com personagens ilustres dos anos 70


ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Personalidade discreta da vida literária francesa, o escritor Jean-Jacques Schuhl surpreendeu todo o mundo ao publicar em 2000, depois de 25 anos de silêncio, um romance cujo tema era sua própria mulher. Não bastasse isso, deu ao livro o nome dessa mesma mulher: "Ingrid Caven" (editado pela Companhia das Letras).
Os cinéfilos reconhecem de imediato: Caven, cantora e atriz alemã, é uma das principais estrelas dos filmes de Rainer Werner Fassbinder (1946-1982), com quem aliás ela foi casada entre 70 e 72. Atuou em algumas das obras mais importantes do diretor alemão, como "Os Deuses da Peste" (69), "O Comerciante das Quatro Estações" (74) e "O Ano das 13 Luas" (78).
A vida inteira de Caven, 62, em detalhes, está nas páginas do livro, mas não na forma de uma biografia, e sim de um romance, em que os personagens são o próprio Fassbinder, Andy Warhol, Yves Saint Laurent, Werner Schroeter, entre outras tantas figuras que ilustraram a década de 70 do século 20. Um romance em que todos os fatos são reais, como o extraordinário trecho em que Saint Laurent cria e recorta um vestido emoldurando o tecido no próprio corpo de Ingrid Caven ou o capítulo emocionante dos funerais de Fassbinder.
Os anos 70 são a época crucial do livro, o seu grande teatro mundano, construído entre Paris e Nova York, onde se entrecruzam arte, política, dinheiro, drogas, loucura e glamour.
Mas o romance começa antes, no meio da Segunda Guerra, quando a pequena Ingrid canta para os soldados de Hitler. E continua depois da morte de Fassbinder, em 1982 -na obra uma espécie de epílogo simbólico de toda uma época.
"Esse livro é um olhar sobre o século 20, desde os anos 40 até hoje... Mas tudo isso não foi apenas contado: foi transformado em música... Uma suíte musical extremamente contemporânea, com sequências de ritmos variados e mudanças abruptas de perspectiva", declarou o poeta Hans Magnus Enzensberger sobre "Ingrid Caven". A obra ganhou em 2000 o Goncourt, o principal prêmio literário francês.
É o olhar e a escrita de Schuhl, 58, que distingue esse livro de uma simples reportagem biográfica. O romance inteiro se constrói no contraponto entre a história objetiva e a subjetividade do escritor, que afirma pertencer a uma linhagem barroca da literatura. "Quando eu digo barroco, estou pensando num barroco moderno, elétrico, um pouco ascético", disse Schuhl à Folha na entrevista a seguir, feita em seu apartamento em Paris.
"Ingrid Caven" está cheio de eletricidade, de uma energia literária que se manifesta numa forma ao mesmo tempo apaixonada e contemplativa, atenta ao geral e ao particular, à memória e ao momento, ao mundo que desaparece e ao que vai surgindo.

Folha - Como nasceu o livro "Ingrid Caven"?
Jean-Jacques Schuhl -
Digamos que, desde que nós nos conhecemos, há mais de 20 anos, tratava-se de algo latente, sem ser necessariamente o projeto de um livro. Sempre anotei muitas coisas, depois de seus concertos e de conversas que tivemos, sem ter um objetivo preciso. O livro é o resultado de uma observação antiga.

Folha - Ao fazer suas anotações, o sr. pensava em fazer um romance ou uma biografia?
Schuhl -
Nunca pensei em uma biografia. Não gosto de biografias, elas não me interessam. O que tentei fazer nesse livro foi uma mistura de informação e poesia. Parti da pessoa de Ingrid Caven para, através desse prisma encantador, captar diferentes épocas que ela pôde atravessar e as diferentes pessoas que ela encontrou. Parti, para falar de maneira um pouco enfática, da história, do "Zeitgeist", ao mesmo tempo que das minhas próprias pequenas obsessões. No livro, tento reunir o elemento coletivo, mais ou menos objetivo, a uma subjetividade muito forte. No coração de tudo, está o prisma magnético que é essa cantora, atriz e mulher alemã.

Folha - A vida de Ingrid Caven não teria sido um meio de o sr. encontrar um personagem e um mundo romanescos, tarefa cada vez mais difícil para a literatura?
Schuhl -
Sim. Discutiu-se muito se o livro era um romance ou não. Isso não me importa muito. Acho que ele é várias coisas ao mesmo tempo, a poesia, o jornalismo, um pouco de biografia, se se quiser, de história, de reflexão. Talvez seja um romance, talvez não seja, mas creio que certamente ele tem elementos romanescos -palavra, aliás, que me agrada muito. E de fato na vida de Ingrid Caven há muito de romanesco. Eu parti do romanesco contido nessa vida para ficcionalizar o real. É uma atitude que eu gosto bastante: partir de alguma coisa que já está aí e desrrealizá-la. Essa é uma das vias da poesia.

Folha - O sr. pensa que a forma do romance se tornou insuficiente hoje para dar conta da experiência da vida?
Schuhl -
Tudo depende do que chamamos romance. Se se trata do romance balzaquiano do século 19, ele é algo completamente insuficiente. Mas há romances que contrariam a cronologia, que apelam a outros gêneros extra-romanescos, para inseri-los na obra, como é o caso de Joyce. É o que eu chamo de romance barroco. Eu gostaria de pertencer a essa linhagem. O personagem Ingrid Caven, aliás, com tudo o que ela viveu, com sua maneira de cantar e atuar, foi um bom trampolim para esse barroco. E, quando eu digo barroco, estou pensando num barroco moderno, elétrico, um pouco ascético. Dito isso, penso que o barroco é sinônimo de despesa, de fausto, e corresponde a períodos, se não revolucionários, o que é exagerado, mas de grande efervescência. Mas hoje vivemos, ao contrário, num período de depressão e de restauração. Então, no dominío estritamente literário e artístico, penso que um livro como o meu está bastante isolado, porque voltamos a práticas literárias mais lineares e clássicas, mesmo se elas se dão uma aparência de vanguarda e de modernidade.

Folha - O seu livro seria uma espécie de réquiem de uma época? Tem a sensação de que algo acabou com o fim dos anos 70?
Schuhl -
Eu tentei não tratá-lo no modo muito patético do réquiem, mas, sim, houve uma mutação. Não sou capaz de analisar como um sociólogo faria, mas podemos dizer que no mesmo momento ocorreu a Aids, essa enorme epidemia ligada ao sexo que mudou as relações sociais e nossas estruturas mentais, e chegaram as novas tecnologias, particularmente as técnicas de comunicação, que também transformaram as relações. Os dois acontecimentos provocaram um fechamento das pessoas em si mesmas. A explosão galopante da televisão, que começou antes dos anos 70, mas se fortaleceu naquela época, vai igualmente nesse sentido. Então todos esses fenômenos provocaram uma grande mudança, que eu comparo à evolução das espécies descrita por Darwin. Eu me sinto hoje como essas espécies que estão muito mal adaptadas ao período seguinte.


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