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Literatura eletro barroca
Pisco del Gaiso - 22.jun.92/Folha Imagem
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A cantora e atriz Ingrid Caven, personagem do livro de Jean-Jacques Schuhl |
"Ingrid Caven", romance do francês Jean-Jacques Schuhl, narra a vida da mulher, cantora e atriz alemã e conta com personagens ilustres dos anos 70
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ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Personalidade discreta da vida
literária francesa, o escritor Jean-Jacques Schuhl surpreendeu todo
o mundo ao publicar em 2000, depois de 25 anos de silêncio, um romance cujo tema era sua própria
mulher. Não bastasse isso, deu ao
livro o nome dessa mesma mulher: "Ingrid Caven" (editado pela
Companhia das Letras).
Os cinéfilos reconhecem de
imediato: Caven, cantora e atriz
alemã, é uma das principais estrelas dos filmes de Rainer Werner
Fassbinder (1946-1982), com
quem aliás ela foi casada entre 70
e 72. Atuou em algumas das obras
mais importantes do diretor alemão, como "Os Deuses da Peste"
(69), "O Comerciante das Quatro
Estações" (74) e "O Ano das 13
Luas" (78).
A vida inteira de Caven, 62, em
detalhes, está nas páginas do livro,
mas não na forma de uma biografia, e sim de um romance, em que
os personagens são o próprio
Fassbinder, Andy Warhol, Yves
Saint Laurent, Werner Schroeter,
entre outras tantas figuras que
ilustraram a década de 70 do século 20. Um romance em que todos os fatos são reais, como o extraordinário trecho em que Saint
Laurent cria e recorta um vestido
emoldurando o tecido no próprio
corpo de Ingrid Caven ou o capítulo emocionante dos funerais de
Fassbinder.
Os anos 70 são a época crucial
do livro, o seu grande teatro mundano, construído entre Paris e
Nova York, onde se entrecruzam
arte, política, dinheiro, drogas,
loucura e glamour.
Mas o romance começa antes,
no meio da Segunda Guerra,
quando a pequena Ingrid canta
para os soldados de Hitler. E continua depois da morte de Fassbinder, em 1982 -na obra uma espécie de epílogo simbólico de toda
uma época.
"Esse livro é um olhar sobre o
século 20, desde os anos 40 até hoje... Mas tudo isso não foi apenas
contado: foi transformado em
música... Uma suíte musical extremamente contemporânea,
com sequências de ritmos variados e mudanças abruptas de perspectiva", declarou o poeta Hans
Magnus Enzensberger sobre "Ingrid Caven". A obra ganhou em
2000 o Goncourt, o principal prêmio literário francês.
É o olhar e a escrita de Schuhl,
58, que distingue esse livro de
uma simples reportagem biográfica. O romance inteiro se constrói no contraponto entre a história objetiva e a subjetividade do
escritor, que afirma pertencer a
uma linhagem barroca da literatura. "Quando eu digo barroco,
estou pensando num barroco
moderno, elétrico, um pouco ascético", disse Schuhl à Folha na
entrevista a seguir, feita em seu
apartamento em Paris.
"Ingrid Caven" está cheio de
eletricidade, de uma energia literária que se manifesta numa forma ao mesmo tempo apaixonada
e contemplativa, atenta ao geral e
ao particular, à memória e ao momento, ao mundo que desaparece
e ao que vai surgindo.
Folha - Como nasceu o livro "Ingrid Caven"?
Jean-Jacques Schuhl - Digamos
que, desde que nós nos conhecemos, há mais de 20 anos, tratava-se de algo latente, sem ser necessariamente o projeto de um livro.
Sempre anotei muitas coisas, depois de seus concertos e de conversas que tivemos, sem ter um
objetivo preciso. O livro é o resultado de uma observação antiga.
Folha - Ao fazer suas anotações, o
sr. pensava em fazer um romance
ou uma biografia?
Schuhl - Nunca pensei em uma
biografia. Não gosto de biografias,
elas não me interessam. O que
tentei fazer nesse livro foi uma
mistura de informação e poesia.
Parti da pessoa de Ingrid Caven
para, através desse prisma encantador, captar diferentes épocas
que ela pôde atravessar e as diferentes pessoas que ela encontrou.
Parti, para falar de maneira um
pouco enfática, da história, do
"Zeitgeist", ao mesmo tempo que
das minhas próprias pequenas
obsessões. No livro, tento reunir o
elemento coletivo, mais ou menos
objetivo, a uma subjetividade
muito forte. No coração de tudo,
está o prisma magnético que é essa cantora, atriz e mulher alemã.
Folha - A vida de Ingrid Caven não
teria sido um meio de o sr. encontrar um personagem e um mundo
romanescos, tarefa cada vez mais
difícil para a literatura?
Schuhl - Sim. Discutiu-se muito
se o livro era um romance ou não.
Isso não me importa muito. Acho
que ele é várias coisas ao mesmo
tempo, a poesia, o jornalismo, um
pouco de biografia, se se quiser,
de história, de reflexão. Talvez seja um romance, talvez não seja,
mas creio que certamente ele tem
elementos romanescos -palavra, aliás, que me agrada muito. E
de fato na vida de Ingrid Caven há
muito de romanesco. Eu parti do
romanesco contido nessa vida para ficcionalizar o real. É uma atitude que eu gosto bastante: partir de
alguma coisa que já está aí e desrrealizá-la. Essa é uma das vias da
poesia.
Folha - O sr. pensa que a forma do
romance se tornou insuficiente hoje para dar conta da experiência da
vida?
Schuhl - Tudo depende do que
chamamos romance. Se se trata
do romance balzaquiano do século 19, ele é algo completamente insuficiente. Mas há romances que
contrariam a cronologia, que apelam a outros gêneros extra-romanescos, para inseri-los na obra,
como é o caso de Joyce. É o que eu
chamo de romance barroco. Eu
gostaria de pertencer a essa linhagem. O personagem Ingrid Caven, aliás, com tudo o que ela viveu, com sua maneira de cantar e
atuar, foi um bom trampolim para esse barroco. E, quando eu digo
barroco, estou pensando num
barroco moderno, elétrico, um
pouco ascético. Dito isso, penso
que o barroco é sinônimo de despesa, de fausto, e corresponde a
períodos, se não revolucionários,
o que é exagerado, mas de grande
efervescência. Mas hoje vivemos,
ao contrário, num período de depressão e de restauração. Então,
no dominío estritamente literário
e artístico, penso que um livro como o meu está bastante isolado,
porque voltamos a práticas literárias mais lineares e clássicas, mesmo se elas se dão uma aparência
de vanguarda e de modernidade.
Folha - O seu livro seria uma espécie de réquiem de uma época? Tem
a sensação de que algo acabou com
o fim dos anos 70?
Schuhl - Eu tentei não tratá-lo no
modo muito patético do réquiem,
mas, sim, houve uma mutação.
Não sou capaz de analisar como
um sociólogo faria, mas podemos
dizer que no mesmo momento
ocorreu a Aids, essa enorme epidemia ligada ao sexo que mudou
as relações sociais e nossas estruturas mentais, e chegaram as novas tecnologias, particularmente
as técnicas de comunicação, que
também transformaram as relações. Os dois acontecimentos
provocaram um fechamento das
pessoas em si mesmas. A explosão galopante da televisão, que
começou antes dos anos 70, mas
se fortaleceu naquela época, vai
igualmente nesse sentido. Então
todos esses fenômenos provocaram uma grande mudança, que
eu comparo à evolução das espécies descrita por Darwin. Eu me
sinto hoje como essas espécies
que estão muito mal adaptadas ao
período seguinte.
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