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CRÍTICA
Livro é prova de amor à mulher, à literatura e ao mundo
DE PARIS
Houve um tempo em que
histórias de vida brotavam
na literatura como se não existisse
grande diferença entre romance e
realidade. Como se fosse vida
mesmo, e não literatura apenas,
tudo que emergia dos livros. Por
isso, no auge do realismo francês,
Guy de Maupassant pôde chamar
simplesmente de "Uma Vida" o
belo romance que publicou em
1883 contando a tristíssima história de uma provinciana.
Jeanne era o nome da provinciana criada por Maupassant e
tornou-se uma das personagens
femininas mais comoventes da literatura francesa. Elas não são
poucas e com frequência emprestam seus nomes próprios aos livros: "Eugenie Grandet" (Balzac,
1833), "Carmen" (Mérimée,
1845), "Madame Bovary" (Flaubert, de 1856), para ficar com as
mais famosas.
Jean-Jacques Schuhl veio acrescentar mais um nome à galeria feminina do romance francês: "Ingrid Caven". Curiosamente, seu
personagem existe de fato, na vida, no mundo. Não é fruto da
imaginação de seu autor, como as
personagens de Balzac e Flaubert.
"Ingrid Caven" é ao mesmo
tempo uma prova de amor dada a
uma mulher, à literatura e ao
mundo -eis o novo sublime.
À sua amada alemã, Schuhl dedicou o trabalho difícil de transfiguração da experiência autenticamente vivida em matéria literária,
transformando uma existência
em leitura, em infinitas leituras.
Fez isso sabendo que um romance não substitui a vida nem é
a imitação dela, mas constitui em
si mesmo uma vida -o romance
é um "ser vivo" de variadas potências, a literatura é a arte de
criar uma escrita-vida.
Ingrid Caven, a mulher e o personagem, não se sobrepõem: são
duas entidades diferentes, uma
iluminando a outra, se se quiser.
De modo que o livro resulta numa
afirmação do mundo, ou seja, de
tudo que é exterior, diverso, distante da literatura. Esta não precisa rivalizar com o mundo, nem
depreciá-lo ou vampirizá-lo. Pode até mesmo voltar a observar as
coisas e os fatos, pois tem com eles
uma relação de amor e descoberta, não de desprezo.
Num só golpe e com um só livro, Schuhl pôs no ridículo várias
manias da prosa contemporânea:
o subjetivismo obsessivo, o documentarismo aleijão, o desconstrucionismo ensimesmado, o
neo-realismo populista. E sobretudo ofereceu ao leitor uma boa
experiência romanesca, além de
um personagem feminino como
não se via há tempos na prosa
francesa.
(ALCINO LEITE NETO)
Ingrid Caven
Autor: Jean-Jacques Schuhl
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (280 págs.)
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