São Paulo, segunda-feira, 25 de novembro de 2002

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CRÍTICA

Livro é prova de amor à mulher, à literatura e ao mundo

DE PARIS

Houve um tempo em que histórias de vida brotavam na literatura como se não existisse grande diferença entre romance e realidade. Como se fosse vida mesmo, e não literatura apenas, tudo que emergia dos livros. Por isso, no auge do realismo francês, Guy de Maupassant pôde chamar simplesmente de "Uma Vida" o belo romance que publicou em 1883 contando a tristíssima história de uma provinciana.
Jeanne era o nome da provinciana criada por Maupassant e tornou-se uma das personagens femininas mais comoventes da literatura francesa. Elas não são poucas e com frequência emprestam seus nomes próprios aos livros: "Eugenie Grandet" (Balzac, 1833), "Carmen" (Mérimée, 1845), "Madame Bovary" (Flaubert, de 1856), para ficar com as mais famosas.
Jean-Jacques Schuhl veio acrescentar mais um nome à galeria feminina do romance francês: "Ingrid Caven". Curiosamente, seu personagem existe de fato, na vida, no mundo. Não é fruto da imaginação de seu autor, como as personagens de Balzac e Flaubert.
"Ingrid Caven" é ao mesmo tempo uma prova de amor dada a uma mulher, à literatura e ao mundo -eis o novo sublime.
À sua amada alemã, Schuhl dedicou o trabalho difícil de transfiguração da experiência autenticamente vivida em matéria literária, transformando uma existência em leitura, em infinitas leituras.
Fez isso sabendo que um romance não substitui a vida nem é a imitação dela, mas constitui em si mesmo uma vida -o romance é um "ser vivo" de variadas potências, a literatura é a arte de criar uma escrita-vida.
Ingrid Caven, a mulher e o personagem, não se sobrepõem: são duas entidades diferentes, uma iluminando a outra, se se quiser. De modo que o livro resulta numa afirmação do mundo, ou seja, de tudo que é exterior, diverso, distante da literatura. Esta não precisa rivalizar com o mundo, nem depreciá-lo ou vampirizá-lo. Pode até mesmo voltar a observar as coisas e os fatos, pois tem com eles uma relação de amor e descoberta, não de desprezo.
Num só golpe e com um só livro, Schuhl pôs no ridículo várias manias da prosa contemporânea: o subjetivismo obsessivo, o documentarismo aleijão, o desconstrucionismo ensimesmado, o neo-realismo populista. E sobretudo ofereceu ao leitor uma boa experiência romanesca, além de um personagem feminino como não se via há tempos na prosa francesa. (ALCINO LEITE NETO)

Ingrid Caven



    
Autor: Jean-Jacques Schuhl
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 29 (280 págs.)



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