|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
BIA ABRAMO
O locutor e o amor à pátria de chuteiras
É um estranho amor este, obrigatório e que não suporta nenhum tipo de dissonância
|
"O TORCEDOR está louco para se apaixonar de novo
pela seleção brasileira",
dizia Galvão, com sua voz permanentemente embargada. O tom é
aquele que todos conhecemos, entre
a exortação de algo que deveríamos
estar sentindo automaticamente toda vez que haja figurinhas de amarelo em campo ("A Seleção está jogando, pessoal, temos de nos regozijar,
mesmo que o jogo esteja feio e os
uruguaios, justo eles, estejam jogando melhor") e uma reprovação suave, paternal, diante do desânimo.
Tornou-se o mais novo bordão, repetido com cada vez mais veemência, à medida que o jogo se desenrolava e o goleiro fazia defesas cada vez
mais difíceis. Enquanto os jogadores
pipocavam no campo e a torcida-família reagia, com vaias e gritos, Galvão insistia em sua tese, pressupondo que ali havia um time que temos
que amar automaticamente.
Para reforçar, no intervalo, somos
relembrados das razões que devem
nos levar a esse amor, por meio de
imagens mágicas do passado, com a
infernal dupla Pelé & Garrincha,
"gênios da raça" mostrados naquele
preto-e-branco encantador, diante
de zagueiros ainda verdadeira e ingenuamente abobalhados.
A reverência do preto-e-branco fala à nostalgia e ao mito; quase funciona. Pouco depois, somos de volta
jogados à estridência das propagandas de cerveja, das ofertas de eletrodomésticos para a fúria de final de ano e, sim, às vaias da torcida, solenemente ignoradas pelo locutor.
"Pipoqueiro! Pipoqueiro!", gritava
o estádio do Morumbi, não importa
para quem, uma vez que se sucediam
jogadas ruins e passes perdidos, enquanto Galvão fazia jornalismo seletivo, registrando "olas" e aplausos e não considerando relevantes as manifestações de desagrado e de enfado
dos torcedores. É um estranho amor
este, obrigatório e que não suporta
nenhum tipo de dissonância.
Era um jogo cansativo aquele que
acontecia no campo, com estrelas do
futebol internacional entre a apatia,
a má fase e a simples falta de caráter,
e o outro, emitido pelo locutor-símbolo do nacionalismo esportivo hiperbólico e deslocado.
O juiz contava os minutos, deixando passar "faltinhas", no dizer do comentarista da arbitragem, e outras
nem tão "inhas" assim, enquanto
que, do lado de cá do vídeo, uma dúvida-pânico ia se instalando: "Vamos
nessa toada de amor compulsório à
pátria de chuteiras até 2014?".
De sensato, apenas Juan, que, ao
sair do jogo, numa frase de genialidade espontânea, admitiu que o time, na ânsia de fazer o gol, tinha
"corrido desgovernado", franqueza
que o jornalismo seletivo de Galvão
não teve agilidade para ocultar.
biabramo.tv@uol.com.br
Texto Anterior: Nas lojas Próximo Texto: Crítica: "Um Domingo Qualquer" sintetiza Stone Índice
|