São Paulo, quinta, 25 de dezembro de 1997.




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CINEMA
Para diretor, o suicídio é uma opção

Crítico de Cinema

Existe uma estranha designação em São Paulo para filmes produzidos fora do eixo EUA/França: "cinema étnico". Vale a pena lembrá-la, agora que "Gosto de Cereja" estréia por aqui.
A expressão sugere que ver esses filmes implica uma espécie de esforço antropológico. Como se cada um de nós fosse um Lévi-Strauss entre os nhambiquara, tentando entender costumes exóticos. Como se fosse impossível distinguir valores estéticos, ou éticos, nesses filmes.
Em parte, isso é verdade. O fechamento de décadas do Brasil a qualquer outra cinematografia que não a americana de certo modo fez de nós espectadores ignorantes.
Aos poucos, os filmes do Oriente começam a chegar até nós. E, mesmo quem não é familiarizado com a tradição cinematográfica (em geral) começa a notar que, bem longe de "étnicos", esses filmes são até bastante universais. Da etnia, ou nacionalidade, ou o que seja, no entanto, eles retêm a precisão dos gestos e das falas, a observação da paisagem e dos costumes.
Essa introdução talvez seja necessária para chegar até "Gosto de Cereja", na medida em que o novo trabalho de Abbas Kiarostami -ganhador da Palma de Ouro em Cannes/97- pode ser descrito como um conto filosófico, que poderia ter sido filmado na França (por Eric Rohmer), na Dinarmarca (por Carl T. Dreyer), no Japão (por Yasujiro Ozu) etc.
Trata-se, simplesmente, da história de Baddi, homem de meia-idade cuja idéia é tomar barbitúricos e se matar. Ele peregrina por uma região desértica, conversando com as pessoas e tentando convencê-las a cobrir o buraco em que vai se pôr.
Não se trata, claro, de um filme de ação, mas de reflexão, de conversa. Cada um que escuta a oferta de Baddi tem uma reação, que corresponde à sua maneira de vivenciar as coisas.
Obviamente, Kiarostami não é tão inocente de enfrentar o problema de cara. O homem, que passeia de carro, trata com pessoas pobres, a quem propõe um bom dinheiro para que façam "um trabalho". Não sabemos qual.
Vistas assim as coisas, parece uma paquera entre homossexuais, e não é nem de longe impossível que Kiarostami tenha procurado significar isso mesmo: o homem que quer se matar é um homossexual. E toca dois interditos sérios da crença islâmica: homossexualidade e suicídio.
Justamente por viver em uma nação fundamentalista, e num Estado teocrático, Kiarostami tem condições de nos propor questões de âmbito muito mais geral: o que é a vida, a diferença entre as pessoas, a tolerância, o conhecimento, a sabedoria, a morte.
Os surrealistas realizaram nos anos 20 uma enquête célebre -o suicídio é uma solução?-, muito próxima, a rigor, do que indaga "Gosto de Cereja".
No fundo trata-se de saber: aceitamos a vida como um valor em si (como as religiões), ou devemos encontrar um sentido, ainda que precário, pontual, para que ela se justifique? Essa é a dúvida de Baddi, que percorre com ele o território árido de uma periferia, conhecendo as pessoas, seu mundo, suas questões.
Talvez por isso Kiarostami realize aqui seu filme mais seco, sem qualquer concessão, tomando o cuidado de construir um personagem neutro, que não chega sequer a nos comover em sua dor. É o pensamento que Baddi carrega, em suas palavras e atos, que nos interessa, não seu destino.
Embora não seja de estranhar que, pelo seu tom, a Palma de Ouro a "Gosto de Cereja" (dividida com o belíssimo "A Enguia", de Shohei Imamura) tenha espantado parte da crítica.
Mas também é justo lembrar que essa foi uma das premiações mais radicais de Cannes nos últimos anos. Uma das a nos lembrar de que, afinal, o cinema ainda é um instrumento de conhecimento, além de diversão.
(IA)
Filme: Gosto de Cereja Produção: Irã/França, 1997 Direção: Abbas Kiarostami Com: Homayun Ershadi, Abdolhossein Bagheri Quando: a partir de hoje, nos cines Cinearte 1 e Espaço Unibanco 1



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