São Paulo, quinta, 25 de dezembro de 1997.




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CINEMA A diplomacia da imagem


Estréia hoje "Gosto de Cereja", filme de Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano que busca uma maneira de "dissolver os mal-entendidos entre os povos"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

Num momento em que o Irã mais estava isolado do mundo ocidental, no início da década, o nome de Abbas Kiarostami começou a se impor na Europa. Hoje, ele já tem uma penca de prêmios, entre eles a Palma de Ouro em Cannes/97, por "Gosto de Cereja", que estréia hoje.
Atrás de Kiarostami vieram outros nomes, como Mohsen Makhmalbaf ou Jafar Panahi. Aos poucos, um conjunto de filmes fortemente original se impôs, mostrou, numa década de decadência, a diferença entre a arte do cinema e o "cinema de arte". Mas, sobretudo, mostrou um Irã diferente do que julgava o Ocidente: nada de fanáticos terroristas, mas pessoas idênticas a quaisquer outras, em suas grandezas e fragilidades.
Elas surgem em filmes simples na aparência, mas que compõem um tecido sutil, onde real e imaginário cotejam-se todo o tempo, como num jogo de espelhos.
Nesta entrevista à Folha, por fax, de Teerã, Kiarostami fala de seu trabalho, da censura, do cinema como maneira de "dissolver os mal-entendidos entre os povos". Uma diplomacia da imagem, sem dúvida, que, acredita, talvez seja uma tarefa oposta à dos governos.

Folha - Como vê o fato de o Irã se afirmar como uma das principais cinematografias contemporâneas?
Abbas Kiarostami -
Eu prefiro usar a expressão "cineastas iranianos" em vez de "Irã". Há uma nuance. Há na verdade diversas razões para a atual posição do cinema iraniano. Uma das mais importantes é que os cineastas tiveram de se arranjar com as limitações do momento pós-revolucionário. Para encontrar as soluções, tivemos de inventar uma nova linguagem cinematográfica.
Tenho um amigo arquiteto que diz ter feito seus melhores trabalhos em terrenos fora das normas. Acho que é isso.
Folha - O que significou para o sr. a Palma de Ouro em Cannes?
Kiarostami -
Fiquei duplamente comovido. Primeiro, pela satisfação pessoal que representou. Em seguida, porque esse gênero de cinema, que corre o risco de ser sufocado pelo cinema hollywoodiano, foi reconhecido e premiado.
Há, portanto, um certo gênero e um grupo de cineastas que foi reconhecido com o prêmio e que, portanto, o partilhou comigo.
Folha - Com frequência, os personagens centrais de seus filmes são crianças ou adolescentes. Em "Gosto de Cereja", não. Isso significa, talvez, que o Irã deixou de ser uma nação adolescente?
Kiarostami -
Não, com certeza. Pelas estatísticas, ainda somos uma das nações mais jovens do mundo, embora eu já não o seja.
Foi um pouco por acaso que me tornei um cineasta de crianças. Meus primeiros filmes foram encomendados pelo Instituto para o Desenvolvimento da Criança e do Adolescente, trabalhei durante 20 anos para eles e não tenho por que me queixar.
Prefiro o olhar deles ao dos adultos. Às vezes chego a ficar com ciúme de sua compreensão da vida. Mas hoje meus dois filhos tornaram-se também adultos. Talvez seja uma das razões dessa mudança.
Folha - Não me lembro de ter visto paisagens tão duras, tão áridas, em seus filmes anteriores, mesmo quando mostravam uma região devastada pelo terremoto. É o assunto do filme que exigia, ou sua maneira de olhar as coisas mudou?
Kiarostami -
Talvez seja sua maneira de olhar que determina essa impressão. É isso a relação entre cineasta, filme e espectador.
Folha - Em geral, o sr. revela os personagens a partir do que eles têm em comum com os outros. Aqui sua intenção era mostrar Baddi, o protagonista, um homem mais rico do que os demais, a partir de suas diferenças?
Kiarostami -
Acho que, no fim, todos os homens se parecem. Por razões culturais, eles se expressam de modo diferente. Baddi não é tão diferente de Hossein ou dos outros, sobretudo no domínio dos sentimentos.
Todos os homens se parecem, na felicidade ou na infelicidade. O que muda é a razão da felicidade ou da infelicidade. A depressão, por exemplo, não é exclusividade de uma classe social.
Folha - O exército iraniano é muito presente no filme, sempre mencionado por Baddi. Por quê?
Kiarostami -
Não é uma presença do exército como a que pode ser vista nos filmes de guerra. Aqui apenas se faz alusão a uma parte da vida de Baddi, quando ele era jovem, entusiasta, cheio de vida e energia. Tudo isso, porém, é uma lembrança muito remota para ele.
Folha - Em seus filmes há uma aparente dissociação entre tempo e ritmo. O ritmo é calmo, lento. Já os personagens quase sempre têm algo muito urgente a fazer.
Kiarostami -
O ritmo de meus filmes é o da própria vida. Por isso a relação com a vida não é lenta.
O problema começa quando queremos comparar o filme e seu ritmo a outros filmes. Então, meus filmes parecem lentos, sobretudo depois do vídeo e da TV.
Folha - O espaço que o sr. trabalha também é muito original. Existe um aspecto realista, ou neo-realista. Mas ele parece ter falhas, instaurar uma incerteza sobre o "real". Funciona assim?
Kiarostami -
Estou inteiramente de acordo. Há uma frase que me diz muito: "O cinema é uma mentira pela qual tentamos nos aproximar da realidade".
Em todos os meus filmes lembro que o espectador estará vendo uma pura fabricação mental. Não faço parte dos cineastas para quem o sucesso é o poder de tornar crível a sua mentira.
Acredito cada vez mais que toda obra deve acrescentar algo à verdade. Uma verdade que se torna realidade ao contato com o olhar e os sentidos do espectador. Uma verdade, assim, bem diversificada, mesmo se temos tendência a acreditar que só existe uma verdade.
A única coisa que um cineasta pode é colocar questões. Os espectadores é que têm o poder -a partir das idéias sugeridas- de realizar seu próprio filme e tocar sua realidade pessoal.
Não é só o cinema que habita o espaço entre o falso e o verdadeiro. Nossa vida também se desenrola nesse espaço.
Folha - Em "Gosto de Cereja", o sr. tem uma simpatia grande por Baddi. É preciso amar os personagens para fazer um bom filme?
Folha - Com certeza. Ele é parte de mim, um alter ego. Posso amá-lo ou detestá-lo, mas nunca sou indiferente. Estou com ele e me preocupo com seu futuro.
Folha - Baddi quer fazer sua angústia ser entendida pelos outros. O sr. quer ver esse homem ser compreendido pelos iranianos?
Kiarostami -
Não me dirigi apenas aos iranianos, mas também aos brasileiros!
Folha - O filme teve dificuldades com a censura no Irã. O problema ainda existe ou foi superado?
Kiarostami -
Espero que não haja problemas. Sabe-se que o suicídio é um assunto tabu, e isso no mundo inteiro. Mas atrás de cada tabu existe uma enorme necessidade de conhecer aquilo sobre o que repousa a serpente do tabu.
Folha - A censura prejudica os filmes iranianos?
Kiarostami -
Penso que a censura não é defensável.
Folha - Os filmes iranianos são hoje um excelente embaixador do país. O sr. acredita que o cinema tenha um "peso diplomático", neste momento em que o Irã tenta se aproximar do Ocidente?
Kiarostami -
Eu penso mais nos povos do que nos governos. O cinema é um excelente meio de conhecimento, capaz de dissipar grande parte dos mal-entendidos que existem entre os povos.
Os artistas ganham em aproximar os povos, mas talvez para os governos seja o contrário.
Folha - Quais as principais influências que o sr. sofreu?
Kiarostami -
Como todo mundo, fui marcado por filmes e por livros, portanto pela experiência.
Mas experimentei "ao vivo" uma série de acontecimentos históricos que me marcaram. A revolução iraniana (sem juízo de valor), a aniquilação do império soviético (nosso vizinho) e a devastação das ideologias, tudo ao mesmo tempo, toda essa experiência me influenciou profundamente, não só como cineasta, mas como um quinquagenário do fim do século.



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