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ARIANO SUASSUNA
João Guimarães Rosa e o Barroco
ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo
idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de
casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso
e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia
e Licenciado em Artes Ariano Suassuna
ROSA, CERVANTES E EUCLYDES DA CUNHA
É dentro da linha de pensamento aqui mostrada nos últimos números deste Almanaque
que aproximo João Guimarães
Rosa de Euclydes da Cunha. É daí
que vêm suas semelhanças, seus
parentescos profundos, assim como as diferenças que marcam cada um deles dentro da mesma linhagem brasileira e barroca. O
grande livro que é "Os Sertões"
aproxima-se muito mais da Novela épica ou do estilo afortalezado e castanho das Capelas do barroco sertanejo da "Civilização do
Couro". Já o "Grande Sertão: Veredas", descendente da "Demanda do Santo Graal" ou de "A
Donzela Que Foi à Guerra", como que veio completar o "Ciclo
do Ouro" das Minas Gerais, entrando numa comunhão harmoniosa com as Igrejas ou com a
Música mineira do século 18. Fato
semelhante ocorre com "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto
Freyre, ou com o "Ciclo da Cana",
de José Lins do Rego, que integram a "Civilização do Açúcar"
da Zona-da-Mata nordestina.
A meu ver, o Sertão mineiro é
mais parecido com a nossa Zona-da-Mata do que com o verdadeiro
Sertão do Nordeste. Pelo menos é
o que me sugere a paisagem do
"Grande Sertão: Veredas", cheia
de árvores, rios e bosques verdes.
"O Liso do Sussuarão" é apenas
um episódio, isolado dentro de
todo aquele verdume, de todas
aquelas águas.
Já o Sertão nordestino formado
por lugares como o Cariri, a Espinhara, o Pajeú e o Moxotó é um
semi-árido pedregoso, povoado
de cabras, jumentos, carneiros,
répteis e lagartos, carcarás e gaviões. Um grande Planalto amarelo e castanho, com uma ou outra
Serra, muita poeira e muito Sol.
Por isso, as Matas fêmeas do
"Grande Sertão: Veredas" são
aparentadas com os bosques esverdeados da versão portuguesa
da "Demanda do Santo Graal"; e
o Mato macho do Sertão nordestino, com as paisagens secas e pedregosas que Euclydes da Cunha
recriou em sua Novela-épica, é
mais parecido com as estradas, e
planícies, e planaltos, empoeirados e cheios de cabreiros, do
"Dom Quixote", de Cervantes.
Como escritor, um dos meus
defeitos maiores é o tom demasiadamente pessoal e as alusões que
faço de vez em quando a um universo que só para mim tem validade. Mas uma de tais alusões é,
agora, tão importante e esclarecedora para o que tenho a dizer que
não posso me furtar a ela. É que
Enrique Martinez López, professor de Literatura espanhola na
Universidade da Califórnia, escreveu certa vez um "Guia para Leitores Hispânicos do Auto da
Compadecida", do qual extraio
as seguintes palavras:
"O que realmente interessa sublinhar para uma correta introdução à obra de Ariano Suassuna é o
fato especial de que ele é um homem do Sertão (...), dessa zona
desértica, triângulo de fogo solar e
fome que se estende pelo interior
dos Estados situados no Nordeste
(...).
"No Sertão, o que salta aos olhos
é sua virilidade. Desde a erma paisagem que, semelhante à Castela
de Ortega y Gasset, é larga e plana
como o peito de um varão até as
mulheres que são mulheres, mas
com impulsos de homem, como
as que encontramos na obra de
Suassuna. E o homem daquela
terra, o sertanejo, é sobretudo um
homem familiarizado com a ruína. As espantosas secas que periodicamente afligem a região levam
tudo em poucas semanas. A certa
altura do ano, o sertanejo nota
que o suor de sua fronte se evapora depressa demais, que os dias
abrasam, que as noites se tornam
cada vez mais frias, que o gibão de
couro dos vaqueiros se endurece
como couraça de bronze (...).
"É preciso emigrar depressa. O
céu torna-se um forno e a terra arde sob um sol incontrolável e desapiedado que lhe abre gretas pavorosas e calcina todo ser vivo. O
sertão, que é terra sem caminhos,
enche-se de brancas veredas de
ossamentas (...).
"O sertanejo, pois, tem de fazer,
para si, da vida, uma composição
de lugar fatalmente ascética. Assim, tem sobriedade no comer, no
morrer. O gesto recolhido para
dentro, como a palavra, e também
a punhalada, geralmente pouco
explícita. É terra brava, que nos
faz pensar, insistimos, numa Castela ideal, por muitas coisas além
da paisagem. Por sua fome, que
mantém ágeis e combativos os
corpos e aguça o engenho em picardias sutis. Por seu sonho de
água e mar, cujo frescor e riqueza
saem a procurar os homens num
êxodo eterno. Pelo ardente misticismo que às vezes incende de milagres aquelas soledades imensas,
onde imperou a alucinação sangrenta de Antônio Conselheiro ou
a bondade carismática do Padre
Cícero, padrinho do sertão (...).
"Mas também por suas sangrentas defesas da honra e da palavra empenhada. E sobretudo
pela viva tradição jogralesca que
percorre suas cidades poeirentas.
Façanhas de bandidos, duelos famosos, milagres e crimes, burlas e
requestas, coisas de hoje e muito
mais de ontem, tudo isso se canta
nas feiras do sertão. Jograis modernos, alguns com irreverentes
microfones, mas de voz milenária, vão recitando suas coplas, xácaras e romances de cordel ante
auditórios ingênuos que entretanto estão mais familiarizados
com a história dos Doze Pares de
França, da amiga de Bernal Francês ou da Donzela Teodora do
que com um filme qualquer".
A citação é longa, mas, como eu
disse, indispensável: porque é um
espanhol quem subscreve a semelhança que, desde 1947, afirmei
notar entre a Espanha e o Sertão.
E porque, não sendo nem crítico
nem sociólogo, não sei a que atribuir tal semelhança, que existe,
apesar de sermos descendentes de
Portugueses, e não de Espanhóis.
Continua na próxima semana.
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