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GASTRONOMIA
A cozinha do restaurante Fasano, hoje sob comando do chef Salvatore Loi, faz cem anos em 2002
Ensaio de orquestra
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
"Comanda!" A voz do chef
soa como um sinal de partida. "Duas saladas de camarão;
um risoto di mare e um ravióli de
pato; faraona recheada e robalo."
São 20h20 de quinta-feira, às vésperas do feriado de Natal. Começa a funcionar a cozinha do Fasano com a precisão de uma bem
ensaiada orquestra de câmara. Ao
longo das próximas quatro horas,
sairão daqui 183 jantares (três
pratos cada, mais sobremesa), cada um digno de sustentar a reputação desse restaurante, que completa cem anos em 2002.
À frente de tudo -e por trás
também, já que é ele quem cria o
cardápio-, está o chef Salvatore
Loi, consagrado como o melhor
do país pela crítica especializada.
Nascido na Sardenha, começou a
carreira bem longe do glamour de
restaurantes estrelados: numa
cantina do Exército. Estudou e
trabalhou em Milão, Roma, Paris
e Londres antes de voltar à terra
natal. Casado com uma arquiteta
brasileira, aceitou o convite de
Rogério Fasano há dois anos e,
desde então, toca diariamente a
cozinha do Fasano, além de supervisionar o trabalho nas seis
outras casas da família.
"Cozinha é... uma questão de
caráter", diz Loi, adaptando a seu
modo o dito pré-socrático de que
"personalidade é destino". Para
esse chef de caráter ameno e franco, a comida precisa honrar seu
destino humano. Quem tem a alma viva sabe que há um quê de sagrado no ato de comer, e um santo respeito pelo que faz se expressa também em cada gesto do sardo, seja na calma do início, seja no
turbilhão em que a cozinha aos
poucos se transforma.
Cozinha é uma questão de preparo: para ser mais preciso, de
pré-preparo. Os nove cozinheiros
trabalham numa velocidade impressionante. Mas nem nove,
nem 90 homens preparam 45 jantares por hora sem ter seus caldos
e molhos prontos, seu tomate picado, seu recheio feito. Quando o
bicho pega, cada um só tem tempo de escutar a comanda, identificar o que lhe cabe e sair fazendo.
Os ajudantes trazem os pratos
aquecidos, dão um toque na
montagem e voam. Salvatore, na
boqueta, inspeciona tudo. E o
energético Assis, que faz o meio-de-campo, põe salsinha e despacha essas belezas para o outro lado do mundo, a dez metros dali.
O lado de cá é animado e congrega os tipos mais diversos. Duas
histórias: Antônio trabalhava na
roça, no interior do Maranhão.
Veio para São Paulo com 19 anos
sem idéia do que fazer. Hoje é um
dos masseiros que trabalham vistosamente no salão, atrás de uma
parede de vidro. Enquanto ele
mete a mão na massa, o economista Alexandre desossa uma
bandejada de galinha d'angola.
Trabalhou três anos no mercado
financeiro até decidir que não tinha estômago para aquilo. Acabou de se formar em gastronomia; espera agora a oportunidade
de mexer num fogão.
E o chef, não cozinha? Santa ingenuidade. Um chef não frita, não
refoga, não mexe caldo. Um chef
chefia: grita as comandas no ritmo certo, depois supervisiona cada prato antes de ir para a mesa.
Há momentos de crise, como a
sequência de três mesas grandes,
em que cada conviva pediu um
prato diferente. Salvatore chama
o maître Almir: "Assim não é possível". Precisa que os maîtres convençam pelo menos algumas pessoas a fazerem a mesma escolha.
Almir levanta os ombros: "E se
eles não quiserem?". Tem a confiança de quem despacha um ministro pelo telefone avisando que
não é boa hora para vir ao restaurante: "Só depois das 11".
Para complicar, um amigo de
Rogério Fasano trouxe uma linguiça portuguesa para comer com
ele. "Uma o quê?", pergunta Loi,
incrédulo, fazendo cálculos mentais do tempo de cada prato. Cansanção leva a linguiça para a chapa. "Parece aquelas minhocas lá
de Pernambuco."
Não bastasse a linguiça, agora é
um vinho português que está
dando trabalho. O sommelier
Manoel Beato briga com o lacre
de cera de uma garrafa de Barca
Velha 1991. Ex-aluno de letras na
Unesp de Assis, saxofonista nas
horas vagas, Beato é um daqueles
sujeitos raros que não escondem
o que sabem. Pelo contrário: formou todos os sommeliers que trabalham hoje nos restaurantes da
família Fasano.
De um jeito ou outro ("faltou
camarão!"), as três mesas deram
certo. O pior já passou. São 0h15
da madrugada, e a cozinha começa a desacelerar. O ministro chegou e está bem acomodado. O diretor de teatro foi embora. O empresário de TV também. Nem todo mundo vem pela comida: um
lugar desses serve de palco para
toda espécie de vaidade. Mas vaidade não tem lugar na cozinha.
No fim do serviço, a sensação é de
tarefa cumprida, um cansaço honesto de quem fez o que sabe, tão
bem quanto possível.
"E agora? Vamos jantar?" Salvatore e Beato atravessam a rua, para se juntar a Juscelino, o maître
do Gero, numa mesa em que estão outros maîtres e chefs. São
quase 2h da manhã. Conversa
descontraída. Chega a chef argentina Paola Carosella, do vizinho
Figueiras. "De la Rúa renunciou."
Aparece uma garrafa de vinho argentino em solidariedade. A essa
altura, depois de terem servido
conjuntamente quase 1.500 pessoas, é um prazer especial sentarem juntos para comer e beber.
No salão vazio do Gero, a última
mesa faz render ao máximo a lei
de Loi: comida humana, alimento
do espírito. Quem trabalha com
gastronomia não fala muito dessas coisas, mas sabe que o que
mais importa, afinal, nem é a comida. Amanhã começa tudo de
novo; e o que mais vale, na cozinha, como no salão, é quem faz e
quem come a comida.
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