São Paulo, terça-feira, 25 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

GASTRONOMIA

A cozinha do restaurante Fasano, hoje sob comando do chef Salvatore Loi, faz cem anos em 2002

Ensaio de orquestra

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

"Comanda!" A voz do chef soa como um sinal de partida. "Duas saladas de camarão; um risoto di mare e um ravióli de pato; faraona recheada e robalo." São 20h20 de quinta-feira, às vésperas do feriado de Natal. Começa a funcionar a cozinha do Fasano com a precisão de uma bem ensaiada orquestra de câmara. Ao longo das próximas quatro horas, sairão daqui 183 jantares (três pratos cada, mais sobremesa), cada um digno de sustentar a reputação desse restaurante, que completa cem anos em 2002.
À frente de tudo -e por trás também, já que é ele quem cria o cardápio-, está o chef Salvatore Loi, consagrado como o melhor do país pela crítica especializada. Nascido na Sardenha, começou a carreira bem longe do glamour de restaurantes estrelados: numa cantina do Exército. Estudou e trabalhou em Milão, Roma, Paris e Londres antes de voltar à terra natal. Casado com uma arquiteta brasileira, aceitou o convite de Rogério Fasano há dois anos e, desde então, toca diariamente a cozinha do Fasano, além de supervisionar o trabalho nas seis outras casas da família.
"Cozinha é... uma questão de caráter", diz Loi, adaptando a seu modo o dito pré-socrático de que "personalidade é destino". Para esse chef de caráter ameno e franco, a comida precisa honrar seu destino humano. Quem tem a alma viva sabe que há um quê de sagrado no ato de comer, e um santo respeito pelo que faz se expressa também em cada gesto do sardo, seja na calma do início, seja no turbilhão em que a cozinha aos poucos se transforma.
Cozinha é uma questão de preparo: para ser mais preciso, de pré-preparo. Os nove cozinheiros trabalham numa velocidade impressionante. Mas nem nove, nem 90 homens preparam 45 jantares por hora sem ter seus caldos e molhos prontos, seu tomate picado, seu recheio feito. Quando o bicho pega, cada um só tem tempo de escutar a comanda, identificar o que lhe cabe e sair fazendo.
Os ajudantes trazem os pratos aquecidos, dão um toque na montagem e voam. Salvatore, na boqueta, inspeciona tudo. E o energético Assis, que faz o meio-de-campo, põe salsinha e despacha essas belezas para o outro lado do mundo, a dez metros dali.
O lado de cá é animado e congrega os tipos mais diversos. Duas histórias: Antônio trabalhava na roça, no interior do Maranhão. Veio para São Paulo com 19 anos sem idéia do que fazer. Hoje é um dos masseiros que trabalham vistosamente no salão, atrás de uma parede de vidro. Enquanto ele mete a mão na massa, o economista Alexandre desossa uma bandejada de galinha d'angola. Trabalhou três anos no mercado financeiro até decidir que não tinha estômago para aquilo. Acabou de se formar em gastronomia; espera agora a oportunidade de mexer num fogão.
E o chef, não cozinha? Santa ingenuidade. Um chef não frita, não refoga, não mexe caldo. Um chef chefia: grita as comandas no ritmo certo, depois supervisiona cada prato antes de ir para a mesa.
Há momentos de crise, como a sequência de três mesas grandes, em que cada conviva pediu um prato diferente. Salvatore chama o maître Almir: "Assim não é possível". Precisa que os maîtres convençam pelo menos algumas pessoas a fazerem a mesma escolha. Almir levanta os ombros: "E se eles não quiserem?". Tem a confiança de quem despacha um ministro pelo telefone avisando que não é boa hora para vir ao restaurante: "Só depois das 11".
Para complicar, um amigo de Rogério Fasano trouxe uma linguiça portuguesa para comer com ele. "Uma o quê?", pergunta Loi, incrédulo, fazendo cálculos mentais do tempo de cada prato. Cansanção leva a linguiça para a chapa. "Parece aquelas minhocas lá de Pernambuco."
Não bastasse a linguiça, agora é um vinho português que está dando trabalho. O sommelier Manoel Beato briga com o lacre de cera de uma garrafa de Barca Velha 1991. Ex-aluno de letras na Unesp de Assis, saxofonista nas horas vagas, Beato é um daqueles sujeitos raros que não escondem o que sabem. Pelo contrário: formou todos os sommeliers que trabalham hoje nos restaurantes da família Fasano.
De um jeito ou outro ("faltou camarão!"), as três mesas deram certo. O pior já passou. São 0h15 da madrugada, e a cozinha começa a desacelerar. O ministro chegou e está bem acomodado. O diretor de teatro foi embora. O empresário de TV também. Nem todo mundo vem pela comida: um lugar desses serve de palco para toda espécie de vaidade. Mas vaidade não tem lugar na cozinha. No fim do serviço, a sensação é de tarefa cumprida, um cansaço honesto de quem fez o que sabe, tão bem quanto possível.
"E agora? Vamos jantar?" Salvatore e Beato atravessam a rua, para se juntar a Juscelino, o maître do Gero, numa mesa em que estão outros maîtres e chefs. São quase 2h da manhã. Conversa descontraída. Chega a chef argentina Paola Carosella, do vizinho Figueiras. "De la Rúa renunciou." Aparece uma garrafa de vinho argentino em solidariedade. A essa altura, depois de terem servido conjuntamente quase 1.500 pessoas, é um prazer especial sentarem juntos para comer e beber.
No salão vazio do Gero, a última mesa faz render ao máximo a lei de Loi: comida humana, alimento do espírito. Quem trabalha com gastronomia não fala muito dessas coisas, mas sabe que o que mais importa, afinal, nem é a comida. Amanhã começa tudo de novo; e o que mais vale, na cozinha, como no salão, é quem faz e quem come a comida.


Texto Anterior: Diretor lançará versão mais longa em DVD
Próximo Texto: Panorâmica - Literatura: JK Rowling anuncia fim de Harry Potter
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.