São Paulo, sábado, 25 de dezembro de 2004

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LIVROS

ROMANCE/"O HOMEM SENTIMENTAL"

Espanhol tem lançada obra de 1986

Javier Marías traz densidade psicológica em viagem onírica

COLUNISTA DA FOLHA

Numa passagem do romance "O Homem Sentimental", de Javier Marías, o narrador comenta o fato de, em espanhol, a palavra "sueño" significar tanto "sono" quanto "sonho". De certa forma, essa ambivalência percorre o livro do escritor madrileno, publicado originalmente em 1986.
O sonho é o ponto de partida do enredo, resgatando do esquecimento uma cena capital na vida do protagonista -um tenor espanhol que passa a vida percorrendo cidades da Europa (e sentindo-se estrangeiro em todas elas). Quatro anos antes do momento em que se põe a narrar, ele está num trem, indo de Paris para Madri, quando conhece três personagens: o banqueiro Hieronimo Manur, sua mulher, Natalia, e o acompanhante desta, Dato -que tem a tarefa de segui-la por toda parte.
Ao longo de poucos dias, o narrador se torna amigo inseparável de Dato e Natalia, que assistem aos ensaios da ópera "Otelo", de Verdi, na qual o tenor fará o papel de Cássio. Como na tragédia original de Shakespeare, em que Cássio desencadeia o ciúme assassino de Otelo, a presença do tenor obriga Manur a revelar a relação doentia que mantém com a mulher.

"Dom Casmurro"
Para um leitor brasileiro, uma trama de triângulo amoroso com referências a "Otelo" remete, obrigatoriamente, a "Dom Casmurro", de Machado de Assis. Mas as semelhanças cessam aí. No romance de Marías, a densidade psicológica equivale a uma atmosfera onírica, em que as coisas parecem iluminadas por uma luz difusa, que acaba por contaminar a vigília e turvar o raciocínio.
Todos os passos que levam o narrador à paixão por Natalia reaparecem, de uma só vez, num sonho cujo realismo o faz sair do período de torpor que vai da viagem de trem ao momento em que desperta e começa a redigir o texto. Ou seja, o sonho desencadeia uma espécie de livre associação, de jorro discursivo que transforma a prosa de Javier Marías num cipoal retórico muitas vezes obscuro, mas com um preciosismo estilístico cuidadosamente transposto (inclusive naquilo que tem de pomposo) pelo tradutor Eduardo Brandão.
O sonho do narrador, entretanto, é também uma aspiração ao sono, ao retorno a um estado inanimado da matéria, à morte. Sua descrição da impessoalidade dos hotéis de luxo, freqüentados por executivos suicidas, e seu terror de morrer sozinho, sem ter alguém que vele por seu último suspiro e por sua memória, são expressões de um estado de espírito mórbido que a paixão ao mesmo tempo alivia e alimenta.
Esses solilóquios fazem a força do livro. Quando coloca seu protagonista diante de outras personagens, entretanto, Marías cai numa insuportável frivolidade, num fascínio pelo ambiente "glamouroso" de teatros, restaurantes e leilões que elas freqüentam.
As "dissoluções melancólicas" de Natalia soçobram do alto dos sapatos Prada; Dato e Manur são manequins vazios, cujos gestos e frases parecem cuidadosamente estudados para produzir uma aura "kitsch" de mistério e luxúria. Felizmente, a solidão atormentada do narrador ocupa a maior parte de "O Homem Sentimental". (MANUEL DA COSTA PINTO)


O Homem Sentimental
  
Autor: Javier Marías
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (160 págs.)



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