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LIVROS
ROMANCE/"O HOMEM SENTIMENTAL"
Espanhol tem lançada obra de 1986
Javier Marías traz densidade psicológica em viagem onírica
COLUNISTA DA FOLHA
Numa passagem do romance
"O Homem Sentimental",
de Javier Marías, o narrador comenta o fato de, em espanhol, a
palavra "sueño" significar tanto
"sono" quanto "sonho". De certa
forma, essa ambivalência percorre o livro do escritor madrileno,
publicado originalmente em 1986.
O sonho é o ponto de partida do
enredo, resgatando do esquecimento uma cena capital na vida
do protagonista -um tenor espanhol que passa a vida percorrendo cidades da Europa (e sentindo-se estrangeiro em todas
elas). Quatro anos antes do momento em que se põe a narrar, ele
está num trem, indo de Paris para
Madri, quando conhece três personagens: o banqueiro Hieronimo Manur, sua mulher, Natalia, e
o acompanhante desta, Dato
-que tem a tarefa de segui-la por
toda parte.
Ao longo de poucos dias, o narrador se torna amigo inseparável
de Dato e Natalia, que assistem
aos ensaios da ópera "Otelo", de
Verdi, na qual o tenor fará o papel
de Cássio. Como na tragédia original de Shakespeare, em que
Cássio desencadeia o ciúme assassino de Otelo, a presença do tenor obriga Manur a revelar a relação doentia que mantém com a
mulher.
"Dom Casmurro"
Para um leitor brasileiro, uma
trama de triângulo amoroso com
referências a "Otelo" remete,
obrigatoriamente, a "Dom Casmurro", de Machado de Assis.
Mas as semelhanças cessam aí. No
romance de Marías, a densidade
psicológica equivale a uma atmosfera onírica, em que as coisas
parecem iluminadas por uma luz
difusa, que acaba por contaminar
a vigília e turvar o raciocínio.
Todos os passos que levam o
narrador à paixão por Natalia reaparecem, de uma só vez, num sonho cujo realismo o faz sair do período de torpor que vai da viagem
de trem ao momento em que desperta e começa a redigir o texto.
Ou seja, o sonho desencadeia uma
espécie de livre associação, de jorro discursivo que transforma a
prosa de Javier Marías num cipoal
retórico muitas vezes obscuro,
mas com um preciosismo estilístico cuidadosamente transposto
(inclusive naquilo que tem de
pomposo) pelo tradutor Eduardo
Brandão.
O sonho do narrador, entretanto, é também uma aspiração ao
sono, ao retorno a um estado inanimado da matéria, à morte. Sua
descrição da impessoalidade dos
hotéis de luxo, freqüentados por
executivos suicidas, e seu terror
de morrer sozinho, sem ter alguém que vele por seu último suspiro e por sua memória, são expressões de um estado de espírito
mórbido que a paixão ao mesmo
tempo alivia e alimenta.
Esses solilóquios fazem a força
do livro. Quando coloca seu protagonista diante de outras personagens, entretanto, Marías cai numa insuportável frivolidade, num
fascínio pelo ambiente "glamouroso" de teatros, restaurantes e
leilões que elas freqüentam.
As "dissoluções melancólicas"
de Natalia soçobram do alto dos
sapatos Prada; Dato e Manur são
manequins vazios, cujos gestos e
frases parecem cuidadosamente
estudados para produzir uma aura "kitsch" de mistério e luxúria.
Felizmente, a solidão atormentada do narrador ocupa a maior
parte de "O Homem Sentimental".
(MANUEL DA COSTA PINTO)
O Homem Sentimental
Autor: Javier Marías
Tradução: Eduardo Brandão
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 33,50 (160 págs.)
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