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ROMANCE/"PHUTATORIUS"
Jaime Rodrigues forja obra sobre a impossibilidade de comunicação
LUIZ RUFFATO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Não é longa a tradição da prosa experimental no Brasil.
Podemos afirmar, com certa segurança, que o primeiro autor a
questionar a forma tradicional do
romance no país foi Machado de
Assis (1839-1908) nas suas insuperáveis "Memórias Póstumas de
Brás Cubas" (1881), um confessado diálogo com o maior de todos
os experimentalistas, o pároco irlandês Laurence Sterne (1713-1768), que nos legou "A Vida e as
Opiniões do Cavalheiro Tristam
Shandy" (1760-1767).
No prólogo da quarta edição,
Machado de Assis escrevia, zombeteiramente, que alguns perguntavam se aquilo era um romance,
ao que prontamente respondia,
por meio do próprio finado, que
"era um romance para uns e não o
era para outros".
Quase cem anos depois, a comissão julgadora do 2º Prêmio
Erico Verissimo de Romance
(Lygia Fagundes Telles, Hélio Pólvora e Guilhermino César) deu o
primeiro lugar a "Phutatorius",
do carioca Jaime Rodrigues (1941-1998), publicado em 1979 pela editora Globo e reeditado agora pela
DBA.
E, mais uma vez, com certeza,
alguém há de perguntar: mas trata-se de um romance? Porque, da
mesma maneira que Machado de
Assis, Jaime Rodrigues foi buscar
no "Tristam Shandy" inspiração.
E, como ele, não se furta a citar a
fonte.
À página 108, o narrador afirma:
"Este livro é uma mistura, completamente pirada, de "The Life
and Opinions of Tristam Shandy",
"Naked Lunch" e da página um do
"Times" de 8 de novembro de
1968". Sterne mais William Burroughs (1914-1997) mais informação jornalística...
"Phutatorius" é isso e não é. A
ligação deste romance com o
"Tristam Shandy" é evidente, desde o uso de um personagem (na
verdade, um interlocutor) chamado Yorick, o bufão shakespeariano, mas também o pároco bem
humorado de Sterne, até o título,
"Phutatorius" -"copulador"
"personagem" que aparece num
"prefácio do autor" (sarcasticamente aposto à página 212 da
magnífica tradução de José Paulo
Paes).
Mas, se Jaime Rodrigues oferece
entre as pistas o nome de um
beatnik, devemos nos precaver e
não levá-lo a sério demais.
Digressão
O romance é uma interminável
digressão de um personagem absolutamente neurótico -chamado indiscriminadamente o poeta,
Jaime, eu- preso a uma desbotada poltrona azul a "nove passos e
um pouquinho" de uma geladeira, enfiados todos -inclusive estantes repletas de livros- num
empoeirado quarto-sala no Rio
de Janeiro.
Dali, de sua poltrona, o protagonista sobre tudo discorre: de filmes que "ouve" na televisão do
vizinho a bilhetes recebidos de
amigos; de maneiras práticas de
provocar a morte de centenas de
pessoas ao mesmo tempo a maledicências contra pessoas conhecidas de vista; de publicitários a
personagens de histórias em quadrinhos.
Céline
O estilo no entanto não é o de
Sterne -afeito a frases longas, à
paródia, a interpolações, à negação absoluta do tempo. Podemos
aproximar Jaime Rodrigues a
Louis Ferdinand Céline (1894-1961), o genial (e execrável pelo
seu colaboracionismo com os nazistas) romancista francês, dono
de uma prosa virulenta e niilista.
E a temática o aproxima ainda
de outro escritor, o franco-irlandês Samuel Beckett (1906-1989), e
talvez mais especificamente ao
seu romance "Malone Morre"
(1951): a desesperança absoluta
em relação aos destinos do homem leva o protagonista a um beco sem saída.
Se inicialmente nos deparamos
com as dificuldades da personagem principal de lidar com a realidade (ou com a realidade "lá de
fora"), aos poucos tudo converge
para o rompimento definitivo das
relações com o mundo (que se
torna mera referência do vivido
entre quatro paredes).
É como se se rompesse o fio da
razão e o teto da imaginação desabasse sobre nossas cabeças instaurando o reino da pura fantasia
(ou da loucura, dá na mesma). A
ponto de, num rasgo de delírio, a
salvação única -se é que existe- encontrar-se nos efeitos depuradores da bosta de um elefante voador...
A exaustiva erudição do personagem/autor (que, pantagruelicamente, consome tudo à sua volta,
da alta cultura a ícones pop, sem
distinção) leva-o a rejeitar o mundo medíocre e insípido. "Phutatorius" é o romance da impossibilidade de comunicação. Essa sua
força talvez seja o principal obstáculo imposto ao leitor.
Luiz Ruffato é escritor, autor de "Eles
Eram Muitos Cavalos" (ganhador do Prêmio Jabuti em 2001) e organizador de
"25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova
Literatura Brasileira"
Phutatorius
Autor: Jaime Rodrigues
Editora: DBA
Quanto: R$ 32 (252 págs.)
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