São Paulo, sábado, 25 de dezembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROMANCE/"PHUTATORIUS"

Jaime Rodrigues forja obra sobre a impossibilidade de comunicação

LUIZ RUFFATO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Não é longa a tradição da prosa experimental no Brasil. Podemos afirmar, com certa segurança, que o primeiro autor a questionar a forma tradicional do romance no país foi Machado de Assis (1839-1908) nas suas insuperáveis "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), um confessado diálogo com o maior de todos os experimentalistas, o pároco irlandês Laurence Sterne (1713-1768), que nos legou "A Vida e as Opiniões do Cavalheiro Tristam Shandy" (1760-1767).
No prólogo da quarta edição, Machado de Assis escrevia, zombeteiramente, que alguns perguntavam se aquilo era um romance, ao que prontamente respondia, por meio do próprio finado, que "era um romance para uns e não o era para outros".
Quase cem anos depois, a comissão julgadora do 2º Prêmio Erico Verissimo de Romance (Lygia Fagundes Telles, Hélio Pólvora e Guilhermino César) deu o primeiro lugar a "Phutatorius", do carioca Jaime Rodrigues (1941-1998), publicado em 1979 pela editora Globo e reeditado agora pela DBA.
E, mais uma vez, com certeza, alguém há de perguntar: mas trata-se de um romance? Porque, da mesma maneira que Machado de Assis, Jaime Rodrigues foi buscar no "Tristam Shandy" inspiração. E, como ele, não se furta a citar a fonte.
À página 108, o narrador afirma: "Este livro é uma mistura, completamente pirada, de "The Life and Opinions of Tristam Shandy", "Naked Lunch" e da página um do "Times" de 8 de novembro de 1968". Sterne mais William Burroughs (1914-1997) mais informação jornalística...
"Phutatorius" é isso e não é. A ligação deste romance com o "Tristam Shandy" é evidente, desde o uso de um personagem (na verdade, um interlocutor) chamado Yorick, o bufão shakespeariano, mas também o pároco bem humorado de Sterne, até o título, "Phutatorius" -"copulador" "personagem" que aparece num "prefácio do autor" (sarcasticamente aposto à página 212 da magnífica tradução de José Paulo Paes).
Mas, se Jaime Rodrigues oferece entre as pistas o nome de um beatnik, devemos nos precaver e não levá-lo a sério demais.

Digressão
O romance é uma interminável digressão de um personagem absolutamente neurótico -chamado indiscriminadamente o poeta, Jaime, eu- preso a uma desbotada poltrona azul a "nove passos e um pouquinho" de uma geladeira, enfiados todos -inclusive estantes repletas de livros- num empoeirado quarto-sala no Rio de Janeiro.
Dali, de sua poltrona, o protagonista sobre tudo discorre: de filmes que "ouve" na televisão do vizinho a bilhetes recebidos de amigos; de maneiras práticas de provocar a morte de centenas de pessoas ao mesmo tempo a maledicências contra pessoas conhecidas de vista; de publicitários a personagens de histórias em quadrinhos.

Céline
O estilo no entanto não é o de Sterne -afeito a frases longas, à paródia, a interpolações, à negação absoluta do tempo. Podemos aproximar Jaime Rodrigues a Louis Ferdinand Céline (1894-1961), o genial (e execrável pelo seu colaboracionismo com os nazistas) romancista francês, dono de uma prosa virulenta e niilista.
E a temática o aproxima ainda de outro escritor, o franco-irlandês Samuel Beckett (1906-1989), e talvez mais especificamente ao seu romance "Malone Morre" (1951): a desesperança absoluta em relação aos destinos do homem leva o protagonista a um beco sem saída.
Se inicialmente nos deparamos com as dificuldades da personagem principal de lidar com a realidade (ou com a realidade "lá de fora"), aos poucos tudo converge para o rompimento definitivo das relações com o mundo (que se torna mera referência do vivido entre quatro paredes).
É como se se rompesse o fio da razão e o teto da imaginação desabasse sobre nossas cabeças instaurando o reino da pura fantasia (ou da loucura, dá na mesma). A ponto de, num rasgo de delírio, a salvação única -se é que existe- encontrar-se nos efeitos depuradores da bosta de um elefante voador...
A exaustiva erudição do personagem/autor (que, pantagruelicamente, consome tudo à sua volta, da alta cultura a ícones pop, sem distinção) leva-o a rejeitar o mundo medíocre e insípido. "Phutatorius" é o romance da impossibilidade de comunicação. Essa sua força talvez seja o principal obstáculo imposto ao leitor.


Luiz Ruffato é escritor, autor de "Eles Eram Muitos Cavalos" (ganhador do Prêmio Jabuti em 2001) e organizador de "25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira"

Phutatorius
   
Autor: Jaime Rodrigues
Editora: DBA
Quanto: R$ 32 (252 págs.)



Texto Anterior: Livros - Romence/"O Homem Sentimental": Javier Marías traz densidade psicológica em viagem onírica
Próximo Texto: Vitrine brasileira/Ficção - Romance: Gospel
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.