São Paulo, sexta, 25 de dezembro de 1998

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Dois momentos de Natal, na igreja e em casa

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

"Quando tudo repousava em silêncio e a noite ia em meio de seu curso, baixou do céu o Verbo que se fez carne." Palavras do "Livro da Sabedoria", capítulo 18, versículos 14 e 15. Ninguém precisa ficar alarmado que não vou cometer uma homilia natalina. Partindo de quem parte, um sermão seria obsceno em minha boca. Mas não se pode falar em Natal sem que se lembre aquele de 2.000 anos atrás.
"Subiu também José, da cidade de Nazaré, na Galiléia, à cidade de Davi, chamada Belém, na Judéia, para ser alistado com Maria, a qual estava para ser mãe. E aconteceu que estando ali, completaram-se os dias em que ela devia dar à luz. E deu à luz o seu filho primogênito e envolveu-o em panos, reclinando- o em um presépio, porque não havia lugar para eles nas estalagens."
"E naquela região havia pastores velando e guardando o seu rebanho. E eis que apareceu diante deles um anjo do Senhor e a claridade de Deus os cercou de esplendor. E tiveram grande medo. O anjo disse-lhes: "Não temais! Eis que vos anuncio uma grande alegria. É que hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor. E este é o sinal para vós. Achareis um menino envolto em panos e reclinado num presépio.' E subitamente, apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste, dizendo: "Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade'."
Os pastores -continuaria Lucas no evangelho da segunda missa de Natal- não ficaram esmagados diante dos anjos. Tão logo receberam a boa nova (e é bom deitar erudição lembrando que "evangelho" significa boa nova, quase que bossa nova), os pastores reagiram como qualquer homem deve reagir diante de um aviso vindo do céu: "Vamos até Belém e vejamos o que ali sucedeu". Era um processo científico, o desses pastores em meio à imensa noite da Judéia.
Piedosos proveitos podemos tirar dessa simples história. A começar pelo silêncio. "Dum medium silentium." No meio de um grande silêncio. Nada de importante pode surgir no coração do homem que não seja fruto de um grande, um pesado silêncio. Nenhum Natal germinará em sua carne se não houver a servidão do silêncio. Nenhum amor será amor se não for amado em silêncio.
Mas não basta o silêncio. E mais uma vez os pastores da Judéia dão o exemplo: "Transeamus usque as Bethlehem" (Vamos até Belém). Recebida a mensagem, comunicado o amor, não se pode ficar parado. É necessário ir a algum lugar, atravessar os caminhos para chegar. O amor é uma chegada.
E outra lição poderíamos extrair do Natal. Os Reis Magos também viram o sinal no mesmo céu e deixaram suas distantes terras para adorar o Menino-Deus. Mas não vieram com as mãos vazias. Trouxeram incenso, ouro e mirra. "Vidimus stellam ejus in Oriente et venimus cum muneribus" (Vimos a sua estrela no Oriente e viemos com presentes para adorá-lo).
Ao amor é preciso dar. Nascido no silêncio, exigindo a travessia de todos os caminhos, o amor também solicita que nossas mãos estejam cheias de incenso, ouro e mirra.
Se há mensagens no Natal, essa sobretudo diz respeito aos que amam: o amor tem de ser silencioso, laborioso e pródigo. Ruído, preguiça e mão avara não servem nem para amar a Deus nem para amar o amor.

O menino começou a perceber o que estava acontecendo. Havia meses que o pai não aparecia e a mãe vendia coisas da casa para comprar comida.
O Natal encontrou o garoto alarmado, mas a mãe garantiu que tudo correria bem, tanto o Papai Noel quanto o outro pai, o de verdade, apareceriam no momento oportuno -e ele teria um Natal igual ao das outras crianças e de outros anos.
A mãe armou sozinha a árvore. Não ficou bonita, as luzes deram curto-circuito e não mais se acenderam. O garoto pensou que o pai ainda chegaria a tempo de dar os últimos retoques e todas as luzes, então, se acenderiam.
E o menino retardava a hora de ir para a cama, esperando que o pai entrasse pela sala cheio de embrulhos. No dia seguinte, o menino ia ao quarto dos pais e encontrava a mãe sozinha, na cama vazia.
Até que o menino soube que o Natal havia chegado. A mãe saíra com uma sacola cheia de coisas da casa, voltou ao meio- dia com alguma comida, castanhas, um pacotinho de passas.
"- E o pai?"
"- Estive com ele na cidade, fique descansado, vai aparecer, não nos deixará sozinhos nesta noite."
Quando a tarde caiu, outras árvores de Natal se acenderam, só a do menino ficou escura, ele nem abriu as janelas da frente, para que ninguém soubesse que a sua árvore não tinha luzes e era a mais feia, a mais escura da rua e do mundo.
De repente, se fez um grande silêncio. Todas as crianças dormiam e Papai Noel devia estar percorrendo as casas dos outros meninos. Ele foi à árvore de natal, encontrou-a em sombras, vazia.
Quando o dia clareou, evitou ir à janela, ver o festival de brinquedos que rolava lá fora. A mãe chamou-o para o café de todas as manhãs, cada vez mais ralo, pão há muito sem manteiga.
Olharam-se em silêncio e ele compreendeu tudo.



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