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MARCELO COELHO
O topless, em resumo, não me interessa: é cruel e narcisista
O espantoso, na liberação do topless nas praias cariocas, é que tenha demorado tanto a acontecer.
Tentativas foram feitas há quase
20 anos. A população -e não a
polícia- reagiu.
Por que tanto pudor, no país do
Carnaval? Ocorrem-me duas explicações. A primeira é conservadora: recorre a uma suposta lei do
equilíbrio, segundo a qual toda liberação tem correspondência numa repressão equivalente.
O Brasil inventou a tanga, a
asa-delta, o fio-dental. Tamanha
liberdade abaixo do Equador deveria, assim, ser compensada pelo
tabu dos seios; tratava-se de preservar algo de proibido, isto é, de
erótico, no corpo feminino.
O topless então seria, ridiculamente, um "atentado ao pudor",
uma transgressão, no país da pouca-vergonha, pois nenhuma pouca-vergonha subsiste sem moralismo e proibição.
O argumento é todavia insuficiente. A ligação entre erotismo e
veto tende a valer pouco. Isto é, o
esplendor anatômico e sexual da
mulher brasileira, a bunda, foi
sempre valorizado e desnudado; o
relativo desinteresse do homem
pelos seios contribuiu para o atraso do topless em nossa terra.
O objeto desejado, portanto, liberou-se bem antes do que o objeto subsidiário, os seios, cuja proibição, concluo, não tem nada a
ver com a idéia de desejo, de fixação, de tara.
Passo então à segunda hipótese.
Não é que exista uma equivalência entre proibição e liberdade,
muito menos uma equivalência
entre proibição e desejo.
Esta segunda hipótese é um
pouco mais sinistra. Imagino que
o culto à bunda feminina corresponda, no Brasil, a uma infantilização da mulher.
Não é por acaso que se emprega,
a todo momento, o sinônimo
"bumbum" para designar aquilo
de que estamos falando. Remete-se a um universo infantil.
Infantis, totalmente infantis,
são a Carla do Tchan, a Xuxa, a
Feiticeira, a Tiazinha. O problema não é que se esteja sexualizando a criança; o problema é que estamos infantilizando o sexo.
O desejo pelos seios femininos,
ao contrário, torna o "tio" pedófilo, fixado em "bumbuns", num
"sobrinho" nostálgico da amamentação. Eis tudo a que um machista brasileiro se recusaria a
perceber. Objeto subalterno, a
mulher surge para ele como animal rebolante. Eleger os seios como objeto sexual significaria uma
auto-infantilização do macho
brasileiro; algo como uma rendição diante do que há de fálico,
empinado e forte numa mulher.
Não é à toa que os americanos,
notoriamente interessados em
seios, chamam a mulher de "mamãe", e se tornam submissos
diante de uma Hillary qualquer.
Volto ao tema inicial, perguntando por que, em janeiro de
2000, decidiu-se liberar o topless.
Trata-se de uma vitória feminina? Sem dúvida. É a vitória das
mulheres contra o predomínio,
tão degradante, do "bumbum".
Trata-se de uma vitória contra a
repressão sexual?
Duvido. Certamente, a repressão sexual não é o mesmo que era
há 40 ou 30 anos. A repressão sexual, hoje em dia, se manifesta em
duas coisas. Primeiramente, a exigência de beleza. Só quem tiver
um corpo perfeito está autorizado
ao prazer.
Em segundo lugar, a repressão
sexual mudou de âmbito. À medida que se libera o sexo, fortalece-se o rigor contra a alimentação.
Criaram-se tabus contra a manteiga, o leite, o queijo, o café, o
açúcar.
Ou seja, tudo o que nos dá prazer oral -doces, feijoadas- se
torna objeto proibido. E tanto
mais proibido quanto mais cuidarmos de nossa silhueta. Pois o
imbecil que se dedica ao prazer de
uma lasanha será automaticamente desprezado quando procurar um mínimo de prazer sexual.
Volto, infelizmente, à primeira
hipótese. A toda liberação corresponde uma repressão. A liberação
do sexo corresponde à repressão
da comida, com base em pesquisas proibitivas que surgem diariamente.
Os seios perfeitos que se exibem
nas praias do Rio significam mais
regimes, mais plásticas, mais lipoaspirações, mais exercícios. Parabéns para essas moças. Mas de
quanta brutalidade não terão sido vítimas? Tudo isso para beneficiar a nós, os machos?
Registro que cada vez mais as
mulheres se tornam atentas ao
corpo masculino. Mas o balanço
de poder é ainda desigual.
O topless é como a globalização:
muito moderno, muito razoável,
muito crítico com relação a nosso
atraso, mas também competitivo,
cruel, narcisista. Não apela para o
desejo, nem para o amor. Apela
para o sexo competitivo, que destrói tudo em função do "desempenho". O topless, em resumo, não
me interessa.
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