São Paulo, Quarta-feira, 26 de Janeiro de 2000


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MARCELO COELHO
O topless, em resumo, não me interessa: é cruel e narcisista

O espantoso, na liberação do topless nas praias cariocas, é que tenha demorado tanto a acontecer. Tentativas foram feitas há quase 20 anos. A população -e não a polícia- reagiu.
Por que tanto pudor, no país do Carnaval? Ocorrem-me duas explicações. A primeira é conservadora: recorre a uma suposta lei do equilíbrio, segundo a qual toda liberação tem correspondência numa repressão equivalente.
O Brasil inventou a tanga, a asa-delta, o fio-dental. Tamanha liberdade abaixo do Equador deveria, assim, ser compensada pelo tabu dos seios; tratava-se de preservar algo de proibido, isto é, de erótico, no corpo feminino.
O topless então seria, ridiculamente, um "atentado ao pudor", uma transgressão, no país da pouca-vergonha, pois nenhuma pouca-vergonha subsiste sem moralismo e proibição.
O argumento é todavia insuficiente. A ligação entre erotismo e veto tende a valer pouco. Isto é, o esplendor anatômico e sexual da mulher brasileira, a bunda, foi sempre valorizado e desnudado; o relativo desinteresse do homem pelos seios contribuiu para o atraso do topless em nossa terra.
O objeto desejado, portanto, liberou-se bem antes do que o objeto subsidiário, os seios, cuja proibição, concluo, não tem nada a ver com a idéia de desejo, de fixação, de tara.
Passo então à segunda hipótese. Não é que exista uma equivalência entre proibição e liberdade, muito menos uma equivalência entre proibição e desejo.
Esta segunda hipótese é um pouco mais sinistra. Imagino que o culto à bunda feminina corresponda, no Brasil, a uma infantilização da mulher.
Não é por acaso que se emprega, a todo momento, o sinônimo "bumbum" para designar aquilo de que estamos falando. Remete-se a um universo infantil.
Infantis, totalmente infantis, são a Carla do Tchan, a Xuxa, a Feiticeira, a Tiazinha. O problema não é que se esteja sexualizando a criança; o problema é que estamos infantilizando o sexo.
O desejo pelos seios femininos, ao contrário, torna o "tio" pedófilo, fixado em "bumbuns", num "sobrinho" nostálgico da amamentação. Eis tudo a que um machista brasileiro se recusaria a perceber. Objeto subalterno, a mulher surge para ele como animal rebolante. Eleger os seios como objeto sexual significaria uma auto-infantilização do macho brasileiro; algo como uma rendição diante do que há de fálico, empinado e forte numa mulher.
Não é à toa que os americanos, notoriamente interessados em seios, chamam a mulher de "mamãe", e se tornam submissos diante de uma Hillary qualquer.
Volto ao tema inicial, perguntando por que, em janeiro de 2000, decidiu-se liberar o topless.
Trata-se de uma vitória feminina? Sem dúvida. É a vitória das mulheres contra o predomínio, tão degradante, do "bumbum". Trata-se de uma vitória contra a repressão sexual?
Duvido. Certamente, a repressão sexual não é o mesmo que era há 40 ou 30 anos. A repressão sexual, hoje em dia, se manifesta em duas coisas. Primeiramente, a exigência de beleza. Só quem tiver um corpo perfeito está autorizado ao prazer.
Em segundo lugar, a repressão sexual mudou de âmbito. À medida que se libera o sexo, fortalece-se o rigor contra a alimentação. Criaram-se tabus contra a manteiga, o leite, o queijo, o café, o açúcar.
Ou seja, tudo o que nos dá prazer oral -doces, feijoadas- se torna objeto proibido. E tanto mais proibido quanto mais cuidarmos de nossa silhueta. Pois o imbecil que se dedica ao prazer de uma lasanha será automaticamente desprezado quando procurar um mínimo de prazer sexual.
Volto, infelizmente, à primeira hipótese. A toda liberação corresponde uma repressão. A liberação do sexo corresponde à repressão da comida, com base em pesquisas proibitivas que surgem diariamente.
Os seios perfeitos que se exibem nas praias do Rio significam mais regimes, mais plásticas, mais lipoaspirações, mais exercícios. Parabéns para essas moças. Mas de quanta brutalidade não terão sido vítimas? Tudo isso para beneficiar a nós, os machos?
Registro que cada vez mais as mulheres se tornam atentas ao corpo masculino. Mas o balanço de poder é ainda desigual.
O topless é como a globalização: muito moderno, muito razoável, muito crítico com relação a nosso atraso, mas também competitivo, cruel, narcisista. Não apela para o desejo, nem para o amor. Apela para o sexo competitivo, que destrói tudo em função do "desempenho". O topless, em resumo, não me interessa.


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