São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2002

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RESENHA DA SEMANA

Genealogia da pintura

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Todo mundo já sofreu de um surto de maniqueísmo. O senso comum raciocina por dualismos. Por ser mais fácil e aparentemente mais simples. Embora todo mundo saiba que as coisas nem sempre são tão simples quanto parecem. Vem daí o alívio produzido pelo pensamento que, na sua clareza, evita as conclusões simplistas.
Para além de bem e mal, o alemão Walter Friedlaender (1873-1966) faz uma história da arte de inspiração nietzschiana. Parte do princípio de que existem, desde o século 16, duas vontades antagônicas na base da pintura francesa -uma corrente racional, acadêmica, clássica e apolínea, e outra irracional, livre, romântica e dionisíaca-, mas não cai na armadilha de concebê-las em estado puro ou absoluto.
"De David a Delacroix" (1952) é praticamente um manual. Analisa o nascimento da pintura moderna na França, entre o final do século 18 e meados do 19, suas origens e seus desdobramentos. Mas, contrariando os manuais escolares que concebem a arte da primeira metade do século 19 como uma guerra entre o classicismo e o romantismo, Friedlaender mostra que, em termos absolutos, não faz sentido falar nem em uma coisa nem em outra.
Tudo é relativo. Não existe uniformidade nos movimentos artísticos e por vezes há mais afinidades entre artistas de movimentos antagônicos do que entre aqueles que acabam sendo associados a uma mesma escola.
Delacroix, por exemplo, embora considerado o expoente máximo do romantismo, manifestava fortes resíduos do estilo acadêmico, a ponto de Friedlaender defini-lo por vezes como "barroco clássico". O pintor "travou uma feroz batalha contra a escola racionalista clássica", para acabar se rendendo à evidência de que a "ponta-de-lança do "período moderno" -o século 19- não era nem ele, nem Gros, nem Géricault [seus próximos], mas David, o líder dos classicistas".
Da mesma forma, "o classicismo de Ingres", supra-sumo das regras da academia, foi "influenciado de forma profunda pelo ponto de vista romântico de sua época", que ele tanto combateu. Ingres pode ser acadêmico ao extremo, mas seus verdadeiros seguidores "não foram os fracos e devotos pintores de afrescos nem os pomposos neoclássicos, ligados mais ou menos diretamente à sua escola, mas Manet, Seurat e, especialmente, Degas".
A perspectiva não-dogmática e não-sectária de Friedlaender procura revolver o sentido do discurso histórico, pô-lo novamente em contexto, ampliando horizontes ao submetê-lo de novo à própria história: "Temos que concordar com Baudelaire: a paixão por descobrir a qualquer preço paralelos e analogias entre várias artes e artistas quase sempre leva a singulares equívocos".
A saída é transformar a história da pintura numa espécie de genealogia, em que cabe ao historiador decifrar o DNA das obras em suas diferentes combinações e manifestações: uma dinâmica e complexa germinação e ramificação de impulsos opostos, em que não é absurdo falar de "classicismo romântico" ou de "romantismo clássico".
Termos aparentemente antagônicos como revolução e classicismo estão intimamente associados na arte de David. Pintores que nada têm a ver uns com os outros vão beber nas mesmas fontes para de lá tirar resultados totalmente diferentes: tanto Ingres como Géricault, radicalmente opostos entre si, admiraram David. Tanto David como Géricault admiraram Caravaggio, e assim por diante.
A história põe os sentidos em movimento. Nada é estanque ou impermeável. Nada se perde, tudo se transforma. O heroísmo, que era elemento moral fundamental do classicismo durante a Revolução Francesa, volta como nostalgia para os românticos que combatem o classicismo durante a Restauração.
Friedlaender trabalha com a analogia das formas, mas de modo a que, no contexto histórico, elas muitas vezes revelem o contrário do sentido manifesto que as motivou. O historiador detecta nas formas e cores as afinidades eletivas dos pintores, que vão moldando, às vezes a despeito do que pretendiam, o rumo da arte numa permanente reação e revisão do passado: "Toda corrente principal e claramente definida é influenciada e matizada por correntes divergentes e tributárias". Uma lição para quem insiste em pensar em preto-e-branco.


De David a Delacroix
David to Delacroix
    
Autor: Walter Friedlaender
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (208 págs.)




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