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RESENHA DA SEMANA
Genealogia da pintura
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Todo mundo já sofreu de
um surto de maniqueísmo.
O senso comum raciocina por
dualismos. Por ser mais fácil e
aparentemente mais simples.
Embora todo mundo saiba que
as coisas nem sempre são tão
simples quanto parecem. Vem
daí o alívio produzido pelo pensamento que, na sua clareza, evita as conclusões simplistas.
Para além de bem e mal, o alemão Walter Friedlaender (1873-1966) faz uma história da arte de
inspiração nietzschiana. Parte
do princípio de que existem,
desde o século 16, duas vontades
antagônicas na base da pintura
francesa -uma corrente racional, acadêmica, clássica e apolínea, e outra irracional, livre, romântica e dionisíaca-, mas
não cai na armadilha de concebê-las em estado puro ou absoluto.
"De David a Delacroix" (1952)
é praticamente um manual.
Analisa o nascimento da pintura
moderna na França, entre o final
do século 18 e meados do 19,
suas origens e seus desdobramentos. Mas, contrariando os
manuais escolares que concebem a arte da primeira metade
do século 19 como uma guerra
entre o classicismo e o romantismo, Friedlaender mostra que,
em termos absolutos, não faz
sentido falar nem em uma coisa
nem em outra.
Tudo é relativo. Não existe
uniformidade nos movimentos
artísticos e por vezes há mais afinidades entre artistas de movimentos antagônicos do que entre aqueles que acabam sendo
associados a uma mesma escola.
Delacroix, por exemplo, embora considerado o expoente
máximo do romantismo, manifestava fortes resíduos do estilo
acadêmico, a ponto de Friedlaender defini-lo por vezes como "barroco clássico". O pintor
"travou uma feroz batalha contra a escola racionalista clássica", para acabar se rendendo à
evidência de que a "ponta-de-lança do "período moderno" -o
século 19- não era nem ele,
nem Gros, nem Géricault [seus
próximos], mas David, o líder
dos classicistas".
Da mesma forma, "o classicismo de Ingres", supra-sumo das
regras da academia, foi "influenciado de forma profunda pelo
ponto de vista romântico de sua
época", que ele tanto combateu.
Ingres pode ser acadêmico ao
extremo, mas seus verdadeiros
seguidores "não foram os fracos
e devotos pintores de afrescos
nem os pomposos neoclássicos,
ligados mais ou menos diretamente à sua escola, mas Manet,
Seurat e, especialmente, Degas".
A perspectiva não-dogmática
e não-sectária de Friedlaender
procura revolver o sentido do
discurso histórico, pô-lo novamente em contexto, ampliando
horizontes ao submetê-lo de novo à própria história: "Temos
que concordar com Baudelaire:
a paixão por descobrir a qualquer preço paralelos e analogias
entre várias artes e artistas quase
sempre leva a singulares equívocos".
A saída é transformar a história da pintura numa espécie de
genealogia, em que cabe ao historiador decifrar o DNA das
obras em suas diferentes combinações e manifestações: uma dinâmica e complexa germinação
e ramificação de impulsos opostos, em que não é absurdo falar
de "classicismo romântico" ou
de "romantismo clássico".
Termos aparentemente antagônicos como revolução e classicismo estão intimamente associados na arte de David. Pintores que nada têm a ver uns
com os outros vão beber nas
mesmas fontes para de lá tirar
resultados totalmente diferentes: tanto Ingres como Géricault,
radicalmente opostos entre si,
admiraram David. Tanto David
como Géricault admiraram Caravaggio, e assim por diante.
A história põe os sentidos em
movimento. Nada é estanque ou
impermeável. Nada se perde, tudo se transforma. O heroísmo,
que era elemento moral fundamental do classicismo durante a
Revolução Francesa, volta como
nostalgia para os românticos
que combatem o classicismo
durante a Restauração.
Friedlaender trabalha com a
analogia das formas, mas de
modo a que, no contexto histórico, elas muitas vezes revelem o
contrário do sentido manifesto
que as motivou. O historiador
detecta nas formas e cores as afinidades eletivas dos pintores,
que vão moldando, às vezes a
despeito do que pretendiam, o
rumo da arte numa permanente
reação e revisão do passado:
"Toda corrente principal e claramente definida é influenciada
e matizada por correntes divergentes e tributárias". Uma lição
para quem insiste em pensar em
preto-e-branco.
De David a Delacroix
David to Delacroix
Autor: Walter Friedlaender
Tradução: Luciano Vieira Machado
Editora: Cosac & Naify
Quanto: R$ 30 (208 págs.)
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