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COMENTÁRIO
O intelectual que usou a sociologia como instrumento de combate
CARLOS BENEDITO MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Ao longo das últimas quatro
décadas, Pierre Bourdieu
construiu, de forma consistente e
instigante, um dos corpos de teoria e pesquisa sociológica mais
férteis do pós-guerra.
Uma das raízes da força de sua
obra provém de uma articulada
integração entre teoria e pesquisa
empírica. Por um lado, incorporou em seus trabalhos, de maneira heterodoxa e criativa, uma
multiplicidade de fontes teóricas
tais como Marx, Weber, Durkheim, Gaston Bachelard, Thorsten Veblen, Lévi-Strauss, John
Austin, bem como Norbert Elias,
Erwing Goffman, Ludwig Wittgenstein etc. Por outro, tratou
empiricamente uma enorme diversidade de temas: camponês,
moda, arte, desemprego, escola,
direito, ciência, literatura, religião, classe social, política, esporte, intelectuais, televisão, Estado,
dominação masculina etc.
Abordou esses temas de diferentes procedimentos, indo da
descrição etnográfica a mais detalhada possível aos argumentos
teóricos e filosóficos os mais abstratos, passando também por modelos estatísticos.
É a partir desse incessante confronto entre atividade teórica e
pesquisa empírica que surge a
profusão de conceitos produzidos
pela sua obra, tais como habitus,
campo, prática, illusio doxa, hexis
corporal, distinção social, violência simbólica, capital cultural e vários outros que representaram
contribuições valiosas para a renovação da análise sociológica, de
um modo geral, e particularmente para enfrentar as complexas
mediações que permeiam as relações entre ator e estrutura. Sua
obra procurou transcender determinadas oposições que por um
longo período minaram a ciência
social por dentro, como a separação entre análise do simbólico e
material, o divórcio entre teoria e
pesquisa empírica etc.
A sua sociologia foi construída
num denso debate com as heranças do marxismo, do funcionalismo, estruturalismo, fenomenologia e interacionismo simbólico.
Procurou de forma obstinada
reintroduzir o ator no centro de
suas análises, buscando distanciar-se de um determinismo social e de um voluntarismo individualista. Não foi tarefa fácil, essa
empreitada consumiu o melhor
de suas energias. Recusou enfaticamente a oposição canônica entre indivíduo e sociedade, que
sempre lhe pareceu absurda uma
vez que o social encontra-se internalizado nos indivíduos, impregnando as suas estruturas mentais,
e em larga medida orientando
suas formas de sentir e agir.
Desrespeitou profundamente
as fronteiras disciplinares e as divisões que tendem a existir no interior das ciências sociais. Nesse
sentido a sua influência se estendeu em várias disciplinas nas
ciências humanas: sociologia, antropologia, educação, história,
linguística, estudos literários,
ciência política etc. Sempre concebeu a sociologia como um projeto científico, como uma construção intelectual em constante
oposição ao saber espontâneo.
Ao longo de sua vida, inseriu-se
cada vez mais no debate público
sem se deixar cair na tentação do
profetismo social. Dessa forma, a
sociologia possui a tarefa de desvendar as modalidades de efetuação das diferentes formas de dominação que se encontram escondidas nos diversos mundos
sociais, constituindo-se, portanto,
em poderosa arma de liberação
pessoal e social.
Uma vez ultrapassada as dificuldades iniciais colocadas pela
compreensão da leitura dos seus
trabalhos, o leitor tem a sensação
de estar penetrando no ritmo eletrizante que caracteriza os romances de Balzac. A referência
aqui não é casual, uma vez que os
escritos de Bourdieu evocam determinados dramas existenciais
vivenciados pelos personagens de
Balzac, como Ratignac ou Lucien
de Rubempré, que tende a colocar
em relevo como a aquisição de
um forte capital social e/ou cultural pode encobrir a precariedade
da deficiência da posse de um capital econômico original.
Bourdieu foi a expressão viva do
que define um grande intelectual,
a crítica das idéias prontas, a liberdade em relação aos poderes, a
demolição das alternativas simplistas, problemas a serem tratados. Fez da sociologia uma arma
de combate, um instrumento de
desmistificação das diferentes
formas que assume o processo de
dominação. Morreu em plena fase de maturidade intelectual e
num momento de grande exposição e participação no debate público. Uma perda irreparável. Tinha muito ainda a nos dizer. Nos
legou uma obra instigante que
por um longo período continuará
a alimentar o debate e a atividade
sociológica contemporânea e,
certamente, pelo seu vigor intelectual será capaz de atrair a atenção das novas gerações de cientistas sociais.
Carlos Benedito Martins é professor de
sociologia da Universidade de Brasília.
Foi pesquisador-visitante, em diversas
ocasiões, do Centro de Sociologia Européia, criado e dirigido por Pierre Bourdieu
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