São Paulo, sábado, 26 de janeiro de 2002

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COMENTÁRIO

O intelectual que usou a sociologia como instrumento de combate

CARLOS BENEDITO MARTINS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao longo das últimas quatro décadas, Pierre Bourdieu construiu, de forma consistente e instigante, um dos corpos de teoria e pesquisa sociológica mais férteis do pós-guerra.
Uma das raízes da força de sua obra provém de uma articulada integração entre teoria e pesquisa empírica. Por um lado, incorporou em seus trabalhos, de maneira heterodoxa e criativa, uma multiplicidade de fontes teóricas tais como Marx, Weber, Durkheim, Gaston Bachelard, Thorsten Veblen, Lévi-Strauss, John Austin, bem como Norbert Elias, Erwing Goffman, Ludwig Wittgenstein etc. Por outro, tratou empiricamente uma enorme diversidade de temas: camponês, moda, arte, desemprego, escola, direito, ciência, literatura, religião, classe social, política, esporte, intelectuais, televisão, Estado, dominação masculina etc.
Abordou esses temas de diferentes procedimentos, indo da descrição etnográfica a mais detalhada possível aos argumentos teóricos e filosóficos os mais abstratos, passando também por modelos estatísticos.
É a partir desse incessante confronto entre atividade teórica e pesquisa empírica que surge a profusão de conceitos produzidos pela sua obra, tais como habitus, campo, prática, illusio doxa, hexis corporal, distinção social, violência simbólica, capital cultural e vários outros que representaram contribuições valiosas para a renovação da análise sociológica, de um modo geral, e particularmente para enfrentar as complexas mediações que permeiam as relações entre ator e estrutura. Sua obra procurou transcender determinadas oposições que por um longo período minaram a ciência social por dentro, como a separação entre análise do simbólico e material, o divórcio entre teoria e pesquisa empírica etc.
A sua sociologia foi construída num denso debate com as heranças do marxismo, do funcionalismo, estruturalismo, fenomenologia e interacionismo simbólico. Procurou de forma obstinada reintroduzir o ator no centro de suas análises, buscando distanciar-se de um determinismo social e de um voluntarismo individualista. Não foi tarefa fácil, essa empreitada consumiu o melhor de suas energias. Recusou enfaticamente a oposição canônica entre indivíduo e sociedade, que sempre lhe pareceu absurda uma vez que o social encontra-se internalizado nos indivíduos, impregnando as suas estruturas mentais, e em larga medida orientando suas formas de sentir e agir.
Desrespeitou profundamente as fronteiras disciplinares e as divisões que tendem a existir no interior das ciências sociais. Nesse sentido a sua influência se estendeu em várias disciplinas nas ciências humanas: sociologia, antropologia, educação, história, linguística, estudos literários, ciência política etc. Sempre concebeu a sociologia como um projeto científico, como uma construção intelectual em constante oposição ao saber espontâneo.
Ao longo de sua vida, inseriu-se cada vez mais no debate público sem se deixar cair na tentação do profetismo social. Dessa forma, a sociologia possui a tarefa de desvendar as modalidades de efetuação das diferentes formas de dominação que se encontram escondidas nos diversos mundos sociais, constituindo-se, portanto, em poderosa arma de liberação pessoal e social.
Uma vez ultrapassada as dificuldades iniciais colocadas pela compreensão da leitura dos seus trabalhos, o leitor tem a sensação de estar penetrando no ritmo eletrizante que caracteriza os romances de Balzac. A referência aqui não é casual, uma vez que os escritos de Bourdieu evocam determinados dramas existenciais vivenciados pelos personagens de Balzac, como Ratignac ou Lucien de Rubempré, que tende a colocar em relevo como a aquisição de um forte capital social e/ou cultural pode encobrir a precariedade da deficiência da posse de um capital econômico original.
Bourdieu foi a expressão viva do que define um grande intelectual, a crítica das idéias prontas, a liberdade em relação aos poderes, a demolição das alternativas simplistas, problemas a serem tratados. Fez da sociologia uma arma de combate, um instrumento de desmistificação das diferentes formas que assume o processo de dominação. Morreu em plena fase de maturidade intelectual e num momento de grande exposição e participação no debate público. Uma perda irreparável. Tinha muito ainda a nos dizer. Nos legou uma obra instigante que por um longo período continuará a alimentar o debate e a atividade sociológica contemporânea e, certamente, pelo seu vigor intelectual será capaz de atrair a atenção das novas gerações de cientistas sociais.


Carlos Benedito Martins é professor de sociologia da Universidade de Brasília. Foi pesquisador-visitante, em diversas ocasiões, do Centro de Sociologia Européia, criado e dirigido por Pierre Bourdieu


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