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PERSONALIDADE
Em obras como "Contrafogos" e "Contrafogos 2", sociólogo elucidou convenções do meio intelectual
Pierre Bourdieu deu espaço ao universal
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
É bem mais chique ler um livro
de Jacques Derrida, de Jean-François Lyotard, ou mesmo de
Jean Baudrillard, do que os volumosos estudos sociológicos de
Pierre Bourdieu -morto na última terça-feira- sobre o sistema
de ensino público, sobre as relações entre classe social e gosto artístico na França, ou sobre a constituição do que ele denominou de
"campo literário" -o microcosmo de escritores, críticos, editores
e seus códigos de conduta.
Em "Meditações Pascalianas",
em que revê a própria obra, Bourdieu nos faz entender um pouco
as razões de sua falta de charme.
Estudante de filosofia nos anos
50, Bourdieu afastava-se da predileção geral por "textos e autores
esotéricos, obscuros, e até mesmo, como nos casos de Husserl e
Heidegger, quase inacessíveis por
falta de traduções (as obras-chave
de Husserl e Heidegger serão traduzidas só nos anos 60, ou seja,
num momento de descenso do
fervor de que eram objeto)." Preferiu as "tarefas consideradas
mais humildes do ofício de etnólogo ou de sociólogo: observação
direta, entrevista, codificação dos
dados ou análise estatística".
Essa rememoração diz muito a
respeito da "dureza", da falta de
complacência de Bourdieu diante
das convenções do mundo intelectual, a cuja desmistificação dedicou-se sem rodeios. O apreço
do mandarinato pelas "grandes
questões", pelos jogos do pensamento, pela teoria pura, é na verdade um produto histórico, efeito
de um longo "processo de autonomização" institucional, que
instaura uma "fronteira mágica
entre os eleitos e os excluídos".
Especialmente irônico é o fato
de que "os eleitos" se mostrem cegos diante das origens materiais,
históricas, do prestígio de que
desfrutam. Tendem a atribuir sua
situação privilegiada ao dom natural, a uma vocação pessoal para
desprezar o mundo prático e a
empiria vulgar. Assim resumida,
a avaliação de Bourdieu parece
ser fruto de um populismo ressentido, de uma espécie de antiintelectualismo sociológico. Seu
projeto é outro. Prezando os valores universais da arte, da filosofia
e da ciência, sua preocupação está
em "universalizar as condições do
acesso ao universal", combatendo
todos os mecanismos, sutis ou
não, da exclusão cultural.
"Contrafogos" e "Contrafogos
2" são livros curtos, reunindo intervenções recentes de Bourdieu a
respeito da globalização, das
ameaças do capital monopolista
sobre a produção cultural, sobre a
unificação européia, sobre a televisão e a imprensa. O tom de suas
críticas ao neoliberalismo, embora de extrema veemência, nada
tem de emotivo ou de retórico.
É em nome do conhecimento
científico, da racionalidade e da
experiência concreta que Bourdieu denuncia os mecanismos da
propaganda neoliberal. A ação
coordenada de empresas de consultoria, de instituições estratégicas, de lobbistas, de meios de comunicação, de políticos e intelectuais vai divulgando verdades supostamente indiscutíveis e toma
princípios e experiências próprias
de um único país, os Estados Unidos, como aplicáveis universalmente. Trata-se de um consenso
produzido. Ao internacionalismo
dos interesses financeiros, Bourdieu propõe a consolidação de
um movimento social mundial,
que resista ao processo de desmantelamento do poder público
que se verifica em todo o planeta.
Reunindo textos por vezes apocalípticos, por vezes esperançosos
demais, "Contrafogos" e "Contrafogos 2" são livros de combate.
Rejeitam a idéia de "neutralidade
científica"; mas não abdicam do
espírito desmistificador e da rudeza que faziam de Bourdieu um
autor bem pouco charmoso, mas
muito necessário.
CONTRAFOGOS - Tradutora: Lucy
Magalhães. Editora: Jorge Zahar (r.
México, 31, sobreloja, Rio, tel. 0/xx/21/
2240-0226). Quanto: R$ 14 (152 págs.).
CONTRAFOGOS 2 - Tradutor: André
Telles. Editora: Jorge Zahar. Quanto: R$
17 (116 págs.).
MEDITAÇÕES PASCALIANAS - Tradutor: Sergio Miceli.
Editora: Bertrand Brasil (av. Rio Branco,
99, 20º andar, Rio, tel. 0/xx/ 21/2263-2082). Quanto: R$ 48 (320 págs.).
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