São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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LIVRO - LANÇAMENTOS
Crichton exercita curiosidade em "Timeline"

DANIEL MENDELSOHN
do "The NYT Review of Books"


A bibliografia apresentada no final do novo "eco-tecno-tempo-thriller" de Michael Crichton traz os nomes de 81 livros e artigos eruditos. Ouso adivinhar que são 81 a mais do que constam no final de qualquer outro romance "blockbuster" que é lido hoje nos saguões de espera dos aeroportos.
Esses outros romances não oferecem as informações altamente especializadas presentes em "Timeline", mas é possível que incluam compensações que o leitor não encontrará neste ou em qualquer outro livro de Crichton. Podem ser, por exemplo, personagens que não se resumam a um nome, uma descrição física que cabe em uma linha e uma característica marcante que os diferencie dos dinossauros, gorilas assassinos ou executivas cheias de tesão de livros anteriores do autor.
A bibliografia assustadoramente extensa deste novo livro, com verbetes que abrangem desde a construção de rodas d'água medievais até buracos negros, nos faz ver, mais uma vez, que Crichton se interessa muito menos por pessoas e suas motivações do que por coisas e seu funcionamento.
Seus livros incluem pequenas palestras sobre a patologia de vírus mortais ("O Enigma de Andrômeda"), o princípio de Bernoulli e seu papel na aerodinâmica ("Armadilha Aérea"), buracos negros e tecnologia submarina ("A Esfera"), a evolução dos primatas superiores e o funcionamento complexo dos softwares de reconhecimento de voz ("Congo"), a teoria do caos e a replicação do DNA ("O Parque dos Dinossauros") e muito mais.
Mesmo em "The Great Train Robbery" fica claro que o que mais atraiu a imaginação do autor foi o funcionamento intricado de um crime bem planejado. Em "Revelação", não foram os fatores humanos -desejo, poder, sexo-, mas os labirintos do poder empresarial que seus personagens foram obrigados a percorrer. São esses detalhes que tornam os livros de Crichton tão divertidos, conferindo um realismo documental contundente às histórias.
"Timeline" trata de um grupo de estudantes de Yale que, graças à máquina de viagens no tempo criada por um físico quântico maluco, se vêem presos em abril de 1357, com parcos conhecimentos de francês medieval e apenas 36 horas de prazo para voltar ao presente. Se o misto narrativo de high-tech e retrô extremo fizer você pensar em "O Parque dos Dinossauros" -e, de fato, "Timeline" é o livro de leitura mais agradável que Crichton escreve desde "O Parque dos Dinossauros" -, é porque é um "O Parque dos Dinossauros" em roupagem medieval, em lugar de cretácea.
A teoria científica quente do momento é o "teleporte" quântico, em lugar do sequenciamento genético; o bilionário que quer desafiar as leis do possível, Robert Doniger, curte física, em lugar de engenharia genética; os corajosos protagonistas (o especialista em Idade Média da Universidade de Yale Edward Johnston e seus três alunos, Andre, Chris e a loira bronzeada Kate) se vêem presos no tempo, e não no espaço, e os vilões da história são cavaleiros com nomes complicados como sir Guy Malegant, em lugar de répteis com nomes complicados.
Mas as diferenças param por aí. As partes funcionais -os motores e as engrenagens- dos dois livros são idênticas (e são, em essência, os mesmos motores e engrenagens que operam em "Congo", "A Esfera" e "Mundo Perdido"). Os livros de Crichton são como experimentos de laboratório, cada um dos quais com suas constantes estruturais previsíveis e, para divertir o leitor (ou, o que é mais provável, satisfazer ao mais recente interesse intelectual do autor), algumas variáveis de local, teoria científica, nome de bilionário e espécie de vilão.
Devido à maneira como são construídos, os livros de Crichton costumam ser tão instigantes quanto são as variáveis que ele escolhe. Isso ajuda a explicar o enorme sucesso de "Parque dos Dinossauros", "Mundo Perdido" ou "Revelação" -afinal, ninguém jamais supera totalmente o fascínio universal despertado pelos dinossauros, e, nos anos 90 pós-feministas, não havia assunto de discussão mais divertido do que o assédio sexual.
A aula de Idade Média que Crichton nos oferece é bem mais interessante do que as do colégio. Com ele, você fica a par dos detalhes realmente bacanas, como as opções de vestimenta dos cavaleiros que se arrumavam para disputar torneios e as obras quase esotéricas criadas pelos chefs medievais, capazes de criar doces com aparência de praticamente qualquer coisa. "Os testículos foram muito bem feitos", comenta um personagem, em tom de admiração, referindo-se a sua sobremesa.
A ausência de curiosidade que Crichton manifesta em relação aos humanos e suas motivações internas o limita, mesmo como escritor de ficção científica.
Curiosamente, a melhor ficção científica escrita, de "Frankenstein" em diante, sempre tratou da irrelevância fundamental da ciência -de como, afinal de contas, ela não é capaz de resolver os maiores problemas da humanidade, já que, por mais que a tecnologia se sofistique, a natureza humana sempre permanece mais ou menos a mesma.
Vinte e cinco anos depois de ler a trilogia "Dune", de Frank Herbert, ainda me recordo dos nomes de seus personagens secundários. Mas será que alguém se lembra dos nomes dos personagens de Crichton? Você se lembra, no máximo, da função narrativa que cumpriam e, talvez, dos nomes dos atores que os representaram em suas inevitáveis versões no cinema: o cara representado por Jeff Goldblum, o personagem de Dustin Hoffman.
"Timeline" termina com Doniger denunciando a "mania de entretenimento" que domina a cultura americana, na qual os consumidores procuram uma "autenticidade" de experiência que nem mesmo o mais sofisticado "artifício" é capaz de oferecer. A ironia está justamente aí: poucos produtos de entretenimento são tão artificiais quanto os livros do próprio Crichton.


Tradução Clara Allain


Livro: Timeline Autor: Michael Crichton Editora: Knopf Quanto: R$ 49 (450 págs.) Onde encontrar: livraria Cultura (www.livcultura.com.br)

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