|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Autores contemporâneos de folhetos brasileiros serão tema da sintuosa coleção "Archivos", até hoje exclusivamente dedicada à literatura clássica
Cordel subverte o cânone
A holandesa Ria Lemaire, coordenadora do projeto e do acervo Cantel, volta ao Brasil em março
SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL
Uma literatura "avant la lettre" é
a definição tradicional do cordel
brasileiro. A contestação do cânone está em curso numa extensa
análise de folhetos de cordelistas
nordestinos que deve resultar no
primeiro volume da prestigiosa
coleção "Archivos" dedicado a
autores vivos.
A proeza é mérito da estudiosa
holandesa Ria Lemaire, doutora
em estudos comparados de literatura medieval pela Universidade
de Utrecht e integrante do Centro
de Estudos Latino-Americanos
da Universidade de Poitiers
(França), que coordena a "Archivos" em suporte eletrônico.
Em 1992, Ria Lemaire teve contato com o acervo de cordel brasileiro reunido pelo professor Raymond Cantel e depositado na
Universidade de Poitiers (leia nesta página). A partir daí, observou
que "essa literatura popular que
nasce no Brasil no século 19, impressa, mas não escrita, em função da passagem direta da oralidade à impressão, apresenta muitas características comparáveis às
das literaturas da Idade Média e
do início dos tempos modernos
na Europa".
E concluiu que "é preciso estudar a literatura de cordel sob a base do que ela é de fato, não simplesmente como uma fase anterior à literatura escrita, mas como
uma literatura radicalmente diferente".
Para convencer os organizadores da coleção "Archivos" -que
reúne institutos de estudos literários de 11 países e a Unesco- da
pertinência de realizar um volume sobre o cordel brasileiro, a
pesquisadora precisou solapar alguns preceitos da coleção, como
as noções de autor, leitor e obra
dadas por imutáveis e definitivas.
"Archivos" produziu até hoje 50
títulos, sempre com a pretensão
de promover uma análise textual,
crítica e historiográfica-cultural
que esgote a avaliação de uma
obra (acabada) ou um autor (falecido).
Entre os 16 brasileiros que já foram ou estão sendo abordados
pela coleção, citam-se Euclides da
Cunha ("Os Sertões"), Gilberto
Freyre ("Casa Grande e Senzala"),
Sérgio Buarque de Holanda
("Raízes do Brasil"), Caio Prado
Jr. ("A Formação do Brasil Contemporâneo") e Graciliano Ramos ("Memórias do Cárcere").
Na argumentação em defesa do
cordel, Ria Lemaire recorreu novamente à comparação com características da literatura medieval. Nesta última, a pesquisadora
explica que "o termo autor, por
exemplo, podia assumir vários
significados diferentes: o que
compõe oralmente o texto, o que
canta, o que dita, o que anota, o
que copia ou o mecenas que paga
o copista".
A pesquisadora diz que "se hoje
a maioria dos poetas sabe ler e escrever, às vezes até produzir seus
folhetos em computador e enviá-los por Internet, o cordel não se
tornou, por isso, uma literatura
escrita, no senso moderno do termo. Os poetas continuam criando
mentalmente seus textos, para
anotá-los só depois".
A decisão de dedicar um volume da coleção "Archivos" ao cordel brasileiro foi tomada em 1998
e nesse mesmo ano a especialista
holandesa esteve no Brasil, buscando colaboradores para o projeto. Os professores Gilmar de
Carvalho (Universidade Federal
do Ceará), Elba Braga Ramalho
(Universidade Estadual do Ceará)
e Francisca Neuma Fechina Borges (Universidade Federal da Paraíba) são alguns dos convidados.
No próximo mês, Ria Lemaire
desembarca novamente no país e
intensifica os contatos para a definição dos autores e a produção
dos textos analíticos sobre suas
obras. Mas não há prazo para que
o volume esteja concluído. "Os
projetos "Archivos" levam sempre
vários anos", diz.
Texto Anterior: Programação de TV Próximo Texto: França tem obras dos anos 50 e 60 Índice
|