São Paulo, quinta-feira, 26 de fevereiro de 2004

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CRÍTICA

O Bem e o Mal se defrontam em duelo violento

A. O. SCOTT
DO "NEW YORK TIMES"

Em um episódio profético de "Os Simpsons", o célebre convidado Mel Gibson, que está dirigindo e estrelando um remake de "A Mulher Faz o Homem", solicita a ajuda de Homer Simpson, que representa o gosto (ou falta de gosto) do público. Homer persuade Gibson a mudar o final do filme, substituindo o discurso populista de James Stewart por uma seqüência de ação, uma barragem de tiros para promover a justiça que deixa os corredores do Congresso cobertos de cadáveres. A platéia foge do cinema, enojada.
Pensei em Homer mais de uma vez quando Gibson lançou seu novo filme, "A Paixão de Cristo", depois de alguns cortes de último minuto, e ocupou espaço nas redes de televisão para promover e defender o seu trabalho.
Dada a história da crucificação, Gibson não precisou mudar o final, mas seu filme se concentra de maneira tão infatigável na selvageria das horas finais de Jesus que a inspiração da obra parece ser menos o amor do que a ira, e os resultados são mais agressivos do que esclarecedores. Gibson construiu um espetáculo enervante e doloroso que, no final, também se prova deprimente. É desanimador ver um filme tão evidentemente dotado de abundante convicção religiosa exibindo uma carência tão completa de graça.
A versão que Gibson apresenta para os Evangelhos é sombriamente violenta; a hora final de "A Paixão..." consiste essencialmente de um homem sendo espancado, torturado e assassinado com detalhes explícitos e prolongados.
Ao forçar-nos a encarar a realidade suja da morte de Jesus e a fixar o olhar nas feridas de seu corpo, o filme torna literal algo que os Evangelhos tratam de modo circunspecto e que tende a ser considerado de forma abstrata.
O que torna o filme tão sombrio e feio é a incapacidade de Gibson de pensar além da lógica convencional da narrativa cinematográfica. Na maior parte dos filmes, e certamente em quase todos aqueles que Gibson estrelou ou dirigiu, a violência contra os inocentes exige vingança feroz no ato final, expectativa que nesse caso o diretor desperta e deixa insatisfeita.
Em si, "A Paixão de Cristo" jamais oferece um sentido claro quanto ao objetivo do derramamento de sangue, e essa falta de conclusão é a mais séria falha artística de Gibson. Os Evangelhos, pelo menos sob algumas interpretações, sugerem que a história termina em perdão. Mas um final como esse parece estar além da capacidade imaginativa do diretor. Talvez ele suspeite que o público prefira o terror, a fúria e o sangue. Homer Simpson podia estar certo, afinal.


Tradução Paulo Migliacci


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