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SEGUNDA GUERRA
Abertura dos arquivos federais de Berna revela que o país, que se dizia neutro, não poupou os escritores
Suíça negou asilo a Joyce e Robert Musil
FÁTIMA MIRANDA NUNES
especial para a Folha, de Lausanne
Relatos detalhados de refugiados
e requerentes de asilo na Suíça, entregues aos campos de concentração alemães, estão agora pairando
sobre a consciência helvécia ao
questionar o papel do país na Segunda Guerra Mundial, quando se
dizia neutro no conflito.
Os arquivos do Conselho de Estado Federal da Suíça, recém-abertos à consulta pública na capital Berna, revelam que não foram
os cidadãos judeus os únicos a terem problemas para entrar na Suíça durante a guerra -sendo que
muitos judeus foram deportados
ou entregues à polícia nazista.
Robert Musil, escritor austríaco,
autor do célebre "L'homme sans
Qualités" (O Homem sem Qualidades), e o irlandês James Joyce
("Ulisses") passaram por terríveis
momentos junto à Polícia Suíça de
Estrangeiros, chefiada em 1938
por Heinrich Rothmund -que
em agosto de 1942 baixaria a lei de
deportação de todos os estrangeiros em território suíço.
No caso do escritor austríaco e
sua mulher, Marta, foi negado o
asilo, ainda que contassem com
todo o apoio de Thomas Mann. O
escritor alemão Mann bem que
tentou interceder junto à polícia,
explicando que Musil era um escritor célebre em seu país, que
pretendia se instalar na Suíça para
escrever a continuação de
"L'homme sans Qualités". Mas
Rothmund concede apenas uma
permissão de dois meses.
A Sociedade Suíça de Escritores
(SSE) examina o pedido de Musil.
Porém, o presidente da SSE, Fleix
Moeschlin, estava cansado de receber pedidos de asilo de escritores estrangeiros que, a pretexto de
escrever a beleza das montanhas,
acabavam se imiscuindo nas redações dos jornais, seduzindo os editores com seu talento e tomando o
lugar dos suíços. Assim, Robert
Musil não poderia colaborar com
nenhum jornal ou revista suíça,
deveria recusar todo emprego como redator ou diretor de redação e
negar entrevistas à imprensa.
Ele foi impedido de ganhar a vida na Suíça, a Alemanha proibira a
circulação dos seus livros e seu dinheiro estava terminando. Toda
essa emigração forçada acaba pesando sobre a saúde de Musil, que
acabara de completar 61 anos.
Em 15 de abril de 1942, Marta encontra-o morto na banheira. Sua
esposa o esperava para começar o
jantar que comemoraria o 30º aniversário de casamento.
Concorrência
No caso do pedido de asilo de James Joyce, feito em 30 de setembro de 1940, a situação era ainda
pior, porque, depois de 1938, toda
a solidariedade deteriorara em virtude do avanço do nazismo. Assim, sua entrada no país é negada.
Joyce estava refugiado com sua
família na vila de Saint-Guéraud-le-Puy (França), à beira de
um colapso nervoso, esperando
um visto de entrada na Suíça. Nos
relatos frios dos arquivos de Berna
lemos hoje que Rothmund pergunta à SSE "se esse sr. Joyce é respeitado pelos escritores suíços como um autor de nível internacional, e se as atividades do requerente de asilo poderiam enriquecer o
patrimônio suíço". Mais: se "não
haveria o risco de Joyce incomodar os escritores do país ou mesmo lhes fazer concorrência".
James Joyce deveria ainda provar que possuía recursos para permanecer na Suíça: a Polícia de Estrangeiros exige um depósito de
50.000 francos suíços para lhe
conceder um visto.
No começo de novembro, Joyce,
desesperado, apela aos amigos
americanos a fim de que lhe enviem dinheiro. O Banco de Crédito
Suíço se ocupa da transação, não
sem antes exigir 1% de juros ao
ano sobre o montante do depósito.
Em 29 de novembro de 1940,
Joyce e sua família obtêm autorização para entrar na Suíça, mas o
visto de permanência ainda está
pendente. Joyce chega a Zurique,
mas, três semanas depois, na noite
do dia 9 de janeiro de 1941, tem
violentas dores no abdômen e é
conduzido às pressas a um hospital. O diagnóstico é úlcera perfurada de duodeno.
Os arquivos de Berna não esclarecem bem se sua morte foi anunciada pela Polícia de Estrangeiros
ou pela Sociedade de Escritores, o
que macula ainda mais a imagem
de neutralidade da Suíça na Segunda Guerra.
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