São Paulo, quinta, 26 de fevereiro de 1998

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O sistema de castas da previdência

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Tem assuntos que mexem com o meu sistema nervoso. A situação a que chegou a previdência no Brasil, depois de décadas de negligência e desmandos, é sem dúvida um deles. A aridez natural do tema e o labirinto de minúcias em que se transformou a cobertura da reforma na imprensa não podem obscurecer a gravidade do problema e suas implicações. A quem interessa a confusão? O risco de se ater às árvores é perder de vista a floresta.
O primeiro passo para se ter uma visão de conjunto da situação a que chegamos é entender que o nosso sistema previdenciário estatal divide a população brasileira em duas castas separadas: os cidadãos comuns e o funcionalismo público. A cada uma delas corresponde um regime previdenciário distinto. Enquanto para o cidadão comum (90% da população) valem as regras do famigerado INSS, para a casta dos servidores públicos prevalece um regime especial de previdência regido por suas próprias leis.
A quantas andam os dois sistemas? O INSS atende 17 milhões de aposentados e pensionistas; o valor total dos benefícios pagos no ano passado foi de R$ 47 bilhões, o que dá uma média de R$ 230 mensais por beneficiário. O regime especial montado para o funcionalismo atende os 3 milhões de inativos e pensionistas da União, Estados e municípios (os funcionários celetistas das estatais e bancos oficiais pertencem à casta dos cidadãos comuns). O valor total desembolsado por esse sistema foi de cerca de R$ 49 bilhões, o que dá uma média de R$ 1,3 mil mensais por beneficiário.
Esses números refletem apenas em parte a brutal iniquidade da nossa previdência. De benefícios herdados de pai para filha à insalubridade de gabinetes com ar refrigerado, passando pelo acúmulo desavergonhado de ordenados e aposentadorias múltiplas, há aberrações para todos os gostos. O Brasil é o único país do planeta no qual os aposentados do setor público ganham mais do que seus colegas da ativa. No caso do Judiciário e dos Legislativos federais, por exemplo, o valor médio -note bem: médio- das aposentadorias é de R$ 3,9 mil e R$ 4,9 mil por mês, respectivamente.
E para se ter uma idéia do rigor draconiano da reforma em votação na Câmara, basta lembrar que, com a nova emenda, o benefício máximo a ser concedido ao cidadão comum é de R$ 1,2 mil, ao passo que para o funcionalismo ele será de R$ 12,7 mil mensais. Se um contingente 5,6 vezes menor de aposentados do setor público abocanha um volume de recursos superior ao destinado a seus 17 milhões de pares do INSS, o que poderia haver de estranho ou errado num teto dez vezes maior para eles?
E tem mais: apesar de prever, em algum momento não especificado, o fim da aposentadoria integral para os futuros aposentados do setor público (a lei regulamentando a aplicação do redutor ficou convenientemente para 1999), a reforma estabelece a paridade entre os benefícios pagos aos inativos, de um lado, e a remuneração dos servidores em atividade, de outro.
Quer dizer, qualquer aumento de salário para quem trabalha em cargo público terá que ser automaticamente estendido a quem não mais trabalha, mas se aposentou nele. Se a reforma administrativa algum dia vingar, permitindo valorizar os funcionários que permanecem e têm menor desempenho, uma legião de inativos e pensionistas colherá os frutos.
A iniquidade agride do ponto de vista ético, mas ela não seria tão ofensiva nem traria maiores danos ao país se os gastos com benefícios estivessem devidamente financiados. Não é o caso. Acontece que a disparidade entre as duas castas da previdência é apenas o lado mais visível -a ponta do iceberg- de um gigantesco pesadelo atuarial.
Tanto o INSS como o seu primo rico operam em regime de repartição simples, ou seja, da mão para a boca. As contribuições previdenciárias da geração que está trabalhando não se acumulam num fundo de poupança capitalizado do qual sairiam no futuro as suas aposentadorias, mas saem imediatamente pela outra ponta, na forma de benefícios para os que dependem deles. A geração na ativa carrega nas costas a que pendurou as chuteiras, assim como esta, no passado, financiou com parte da sua renda os benefícios dos que já se foram. O problema surge quando há um descasamento entre mão e boca.
No caso do INSS o descompasso não chega a ser exorbitante, embora tenda a engordar como bola de neve com o tempo. No ano passado, por exemplo, os benefícios pagos superaram em R$ 3 bilhões as contribuições arrecadadas e a diferença teve que sair do orçamento da União. O aspecto mais preocupante diz respeito ao enorme contingente de trabalhadores na economia informal -um mundo de gente que, apesar de nada contribuir, espera receber um dia a sua aposentadoria quando a velhice chegar. Do INSS pode-se dizer que é uma bomba-relógio tiquetaqueando, mas que a reforma em curso deve retardar por mais algum tempo a explosão.
Mas quando nos voltamos para a casa do funcionalismo, o que se constata é não só que a bomba previdenciária já explodiu, mas que a reforma em pouco ou nada atenua os efeitos da radiação e dos escombros que prejudicam seriamente o desenvolvimento da nação.
O fato espantoso é que as contribuições do funcionalismo na ativa cobrem não mais que 10% a 15% do total de benefícios pagos aos inativos da União, Estados e municípios, deixando uma conta ao redor de R$ 40 bilhões anuais para os cofres públicos, isto é, para a casta dos contribuintes do setor privado condenados ao INSS.
Para se ter uma noção do que isso significa, vale registrar que o déficit da previdência do setor público no ano passado foi maior que toda a poupança externa que o Brasil atraiu do resto do mundo em doses cavalares e a peso de ouro. É a poupança externa que está indiretamente cobrindo boa parte desse rombo e dando uma sobrevida à cadeia da felicidade.
Outra comparação sugestiva é lembrar que essa conta supera os gastos totais do nosso governo com o ensino de 1º e 2º graus. O Estado brasileiro gasta mais alimentando a orgia de benefícios a descoberto do passado do que investindo no capital humano do futuro: os seus 3 milhões de inativos e pensionistas absorvem mais recursos públicos do que a educação básica de 38 milhões de crianças e jovens em idade escolar.
Não há por que escamotear. Existe um choque frontal de interesses entre a elite de aposentados do setor público e o resto da sociedade. Não se trata de fomentar o conflito, mas de constatar uma obviedade atuarial. Estamos literalmente trocando o sonho de um futuro melhor pelo pesadelo do nosso passado caduco e esbanjador. Uma nação que buscasse se autocondenar à pobreza e à ignorância perpétuas dificilmente encontraria um método mais perverso e eficaz.



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