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O sistema de castas da previdência
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
Tem assuntos que mexem
com o meu sistema nervoso. A
situação a que chegou a previdência no Brasil, depois de décadas de negligência e desmandos, é sem dúvida um deles. A aridez natural do tema e
o labirinto de minúcias em que
se transformou a cobertura da
reforma na imprensa não podem obscurecer a gravidade do
problema e suas implicações. A
quem interessa a confusão? O
risco de se ater às árvores é
perder de vista a floresta.
O primeiro passo para se ter
uma visão de conjunto da situação a que chegamos é entender que o nosso sistema previdenciário estatal divide a
população brasileira em duas
castas separadas: os cidadãos
comuns e o funcionalismo público. A cada uma delas corresponde um regime previdenciário distinto. Enquanto para o
cidadão comum (90% da população) valem as regras do
famigerado INSS, para a casta
dos servidores públicos prevalece um regime especial de previdência regido por suas próprias leis.
A quantas andam os dois sistemas? O INSS atende 17 milhões de aposentados e pensionistas; o valor total dos benefícios pagos no ano passado foi
de R$ 47 bilhões, o que dá uma
média de R$ 230 mensais por
beneficiário. O regime especial
montado para o funcionalismo atende os 3 milhões de inativos e pensionistas da União,
Estados e municípios (os funcionários celetistas das estatais
e bancos oficiais pertencem à
casta dos cidadãos comuns). O
valor total desembolsado por
esse sistema foi de cerca de R$
49 bilhões, o que dá uma média de R$ 1,3 mil mensais por
beneficiário.
Esses números refletem apenas em parte a brutal iniquidade da nossa previdência. De
benefícios herdados de pai para filha à insalubridade de gabinetes com ar refrigerado,
passando pelo acúmulo desavergonhado de ordenados e
aposentadorias múltiplas, há
aberrações para todos os gostos. O Brasil é o único país do
planeta no qual os aposentados do setor público ganham
mais do que seus colegas da
ativa. No caso do Judiciário e
dos Legislativos federais, por
exemplo, o valor médio -note
bem: médio- das aposentadorias é de R$ 3,9 mil e R$ 4,9
mil por mês, respectivamente.
E para se ter uma idéia do
rigor draconiano da reforma
em votação na Câmara, basta
lembrar que, com a nova
emenda, o benefício máximo a
ser concedido ao cidadão comum é de R$ 1,2 mil, ao passo
que para o funcionalismo ele
será de R$ 12,7 mil mensais. Se
um contingente 5,6 vezes menor de aposentados do setor
público abocanha um volume
de recursos superior ao destinado a seus 17 milhões de pares do INSS, o que poderia haver de estranho ou errado num
teto dez vezes maior para eles?
E tem mais: apesar de prever,
em algum momento não especificado, o fim da aposentadoria integral para os futuros
aposentados do setor público
(a lei regulamentando a aplicação do redutor ficou convenientemente para 1999), a reforma estabelece a paridade
entre os benefícios pagos aos
inativos, de um lado, e a remuneração dos servidores em atividade, de outro.
Quer dizer, qualquer aumento de salário para quem trabalha em cargo público terá que
ser automaticamente estendido a quem não mais trabalha,
mas se aposentou nele. Se a reforma administrativa algum
dia vingar, permitindo valorizar os funcionários que permanecem e têm menor desempenho, uma legião de inativos
e pensionistas colherá os frutos.
A iniquidade agride do ponto de vista ético, mas ela não
seria tão ofensiva nem traria
maiores danos ao país se os
gastos com benefícios estivessem devidamente financiados.
Não é o caso. Acontece que a
disparidade entre as duas castas da previdência é apenas o
lado mais visível -a ponta do
iceberg- de um gigantesco pesadelo atuarial.
Tanto o INSS como o seu primo rico operam em regime de
repartição simples, ou seja, da
mão para a boca. As contribuições previdenciárias da geração que está trabalhando não
se acumulam num fundo de
poupança capitalizado do
qual sairiam no futuro as suas
aposentadorias, mas saem
imediatamente pela outra
ponta, na forma de benefícios
para os que dependem deles. A
geração na ativa carrega nas
costas a que pendurou as chuteiras, assim como esta, no
passado, financiou com parte
da sua renda os benefícios dos
que já se foram. O problema
surge quando há um descasamento entre mão e boca.
No caso do INSS o descompasso não chega a ser exorbitante, embora tenda a engordar como bola de neve com o
tempo. No ano passado, por
exemplo, os benefícios pagos
superaram em R$ 3 bilhões as
contribuições arrecadadas e a
diferença teve que sair do orçamento da União. O aspecto
mais preocupante diz respeito
ao enorme contingente de trabalhadores na economia informal -um mundo de gente
que, apesar de nada contribuir, espera receber um dia a
sua aposentadoria quando a
velhice chegar. Do INSS pode-se dizer que é uma bomba-relógio tiquetaqueando,
mas que a reforma em curso
deve retardar por mais algum
tempo a explosão.
Mas quando nos voltamos
para a casa do funcionalismo,
o que se constata é não só que
a bomba previdenciária já explodiu, mas que a reforma em
pouco ou nada atenua os efeitos da radiação e dos escombros que prejudicam seriamente o desenvolvimento da nação.
O fato espantoso é que as
contribuições do funcionalismo na ativa cobrem não mais
que 10% a 15% do total de benefícios pagos aos inativos da
União, Estados e municípios,
deixando uma conta ao redor
de R$ 40 bilhões anuais para
os cofres públicos, isto é, para a
casta dos contribuintes do setor privado condenados ao
INSS.
Para se ter uma noção do que
isso significa, vale registrar
que o déficit da previdência do
setor público no ano passado
foi maior que toda a poupança
externa que o Brasil atraiu do
resto do mundo em doses cavalares e a peso de ouro. É a poupança externa que está indiretamente cobrindo boa parte
desse rombo e dando uma sobrevida à cadeia da felicidade.
Outra comparação sugestiva
é lembrar que essa conta supera os gastos totais do nosso governo com o ensino de 1º e 2º
graus. O Estado brasileiro gasta mais alimentando a orgia
de benefícios a descoberto do
passado do que investindo no
capital humano do futuro: os
seus 3 milhões de inativos e
pensionistas absorvem mais
recursos públicos do que a educação básica de 38 milhões de
crianças e jovens em idade escolar.
Não há por que escamotear.
Existe um choque frontal de
interesses entre a elite de aposentados do setor público e o
resto da sociedade. Não se trata de fomentar o conflito, mas
de constatar uma obviedade
atuarial. Estamos literalmente
trocando o sonho de um futuro
melhor pelo pesadelo do nosso
passado caduco e esbanjador.
Uma nação que buscasse se
autocondenar à pobreza e à ignorância perpétuas dificilmente encontraria um método
mais perverso e eficaz.
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