São Paulo, Sexta-feira, 26 de Fevereiro de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ARTES PLÁSTICAS
Mostra em Madri dribla os sentidos

CELSO FIORAVANTE
enviado especial a Madri

"Foi tão grande o estrepitoso estrondo e o ruído deste dia que os sentidos corporais, cada um por si, padeceram de grande martírio: o ouvido com o estranho estrondo, os olhos ao ver acontecimento tão lamentável, o olfato com a fetidez expelida pela terra, o paladar com gosto de pó. Foi um dos mais violentos que se conheceu neste reino."
Trecho de carta expedida por um habitante de Arequipa, no Sul do Peru, a um familiar em que narrou o tremor de terra na região no dia 13 de maio de 1784)

"Às Voltas com os Sentidos", exposição em cartaz na Casa das Américas, em Madri, até 7 de março, procura analisar de maneira contemporânea um tema recorrente na história da arte: a maneira como o ser humano capta e condiciona -ou subverte- o poder dos sentidos.
O tema encontrou um campo fértil para o seu desenvolvimento no período barroco, principalmente no século 17 (leia texto abaixo), mas a discussão é anterior.
O pintor renascentista italiano Leonardo da Vinci, por exemplo, considerava a visão o mais privilegiado dos sentidos.
A visão sempre foi um sentido privilegiado no Ocidente, principalmente por suas características pudicas, já que não exige qualquer contato físico entre os corpos para a sua consumação. É também o mais óbvio, pois revela rapidamente todo o seu mistério.
O próprio termo "artes visuais" fortaleceu a afirmação de Da Vinci, mas foi contestado principalmente a partir dos anos 60, quando as artes passaram a ser "corporais". Alguns trabalhos de Lygia Clark, por exemplo, propuseram a interação entre a obra e o corpo do espectador.
Para a mostra madrilenha, a curadora espanhola Estrella de Diego propõe uma "mestiçagem sensorial, uma festa dos sentidos que, ao não privilegiar nenhum em particular, não os hierarquiza", escreveu no catálogo.
Essa subversão se manifesta em obras de dez artistas, quatro dos quais brasileiros: Rosângela Rennó, Nazareth Pacheco, Valeska Soares e Ernesto Neto.
"Realismo Fantástico", de Rosângela Rennó, busca a subversão da visão ao apresentar imagens fugazes e incertas, projetadas na parede e movimentadas pelo calor da luz usada para a sua projeção.
O vestido feito de contas de plástico e lâminas de barbear, de Nazareth Pacheco, brinca com visão e tato. Causa prazer e repulsa. Atrai pelo brilho, mas frusta o desejo com a sua impossibilidade de uso.
O olfato -sentido dos mais misteriosos e privilegiado em culturas como a inca, que possui numerosas expressões para descrevê-lo- é privilegiado nos trabalhos de Ernesto Neto e Valeska Soares.
O primeiro comparece com uma instalação em malha de lycra e cravo, em que o aroma supera a forma. Valeska Soares mostra "Strange Love", escultura em forma de fonte que minimiza a visão e privilegia o olfato ao exalar perfume em vez de água.
Um destaque não-brasileiro da mostra é o mexicano Yishai Jusidman, que apresenta o trabalho "J.W., Anônimo, O.C., A.W.".
São esferas de madeira pintadas com irreconhecíveis rostos de palhaços. Jusidman utiliza o efeito óptico da anamorfose, que deforma a imagem, mas o subverte, pois a sua deformação não segue qualquer lógica dessa ilusão de óptica.
Uma obra criada com o conceito de anamorfose pode ser vista na estação República do metrô de SP. Trata-se de "Momento Antropofágico", de Antonio Peticov, painel de azulejos e tubo de aço que mostra retratos deformados que lembram Oswald de Andrade e Pagú.
A mostra conta ainda com trabalhos de Nicola Costantino, José Antonio Hernández-Díez, Lisa Ludwig, Tony Ousler e César Martínez.


Texto Anterior: Festival: David Cronenberg presidirá Cannes 99
Próximo Texto: Museu do Prado exibe a visão dos holandeses
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.