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CHICO BUARQUE
Vestígios de estranha civilização
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião
Quando um grande artista se encasula ou submerge durante cinco
anos, é útil prestar atenção ao que
carrega consigo ao sair da toca ou
vir à tona. Quando esse artista é
Chico Buarque de Holanda, seria
melhor ter lupa nos ouvidos para
começar a decifrar o que traz escondido na concha.
Para além da tietagem inevitável
que cerca a atual temporada no Palace, há vários aspectos notáveis e
certamente mais relevantes nesse
retorno de Chico à música com o
CD e o show "as cidades", após
cinco anos de exílio até certo ponto
voluntário.
O primeiro deles, ainda externo à
música, está na relação do artista
com sua excelência, o mercado.
Num ambiente em que praticamente toda a canção popular se
submete ao relógio das gravadoras
-CDs de Natal, hits do verão, temas de novelas, CDs de Carnaval, o
diabo- , alimentando e se servindo da roda-viva dos programas de
auditório (de Zezé di Camargo a
Caetano Veloso), Chico Buarque
segue alheio, para poucos.
Esse descompasso se desdobra
em mal-estar e dissonância. O
compositor está à margem da pasteurização festiva que domina a
música popular (o pagode, o axé
pop-carnavalesco baiano, o neo-sertanejo, versões recicladas pela
indústria do samba, da cultura negra e da música caipira).
Seu país é anterior ao desvario
que transformou a cultura popular
numa mistura de padre Marcelo
com Tiazinha, de Carla Perez com
Ratinho. Em "as cidades", o compositor reitera um esforço, que as
próprias canções tratam de frustrar, de resgatar o país da bossa nova, de reconhecer novamente a
época em que "o Brasil parecia visível para todos nós", como disse
em entrevista à Folha.
Daí a presença e a ausência no
novo disco de Tom Jobim -a sua
maior referência-, daí o lirismo
desencantado porque privado de
suas musas. Fica claro por exemplo no show o contraste entre as
mulheres amáveis e reconhecíveis
das canções dos anos 70 ("Terezinha", "Sob Medida", "O Meu
Amor") e antimusas difíceis de
cantar como "Iracema", que vive
na América e "tem saudades do
Ceará, mas não muita", ou "Cecília", a quem o compositor "chamava em silêncio".
Desde "Bye, Bye, Brasil", passando "Pelas Tabelas", até "Sonhos,
Sonhos São", do novo CD, Chico
vem entrelaçando uma espécie de
vertigem pessoal com o delírio coletivo, numa espiral sem fundo em
que as referências (individuais e
nacionais) vão se tornando progressivamente escorregadias, enfumaçadas, irreconhecíveis.
Isso que Chico Buarque já definiu como sendo uma "barafunda
mental" que lhe agradava explorar
tem alcance histórico e está no centro do profundo mal-estar de um
romance como "Estorvo", de 91.
Como no livro, a música de Chico persegue histórias que ainda
possa contar, objetos e pessoas que
ainda possa cantar, mas não há
mais nada, apenas fantasmas, pedaços de cidades e de experiências
imaginadas, pesadelos -uma espécie de vertigem que devolve o
poeta para ao silêncio de que tentava se desembaraçar. A obra de Chico parece cada vez mais impregnada de "quases", de expectativas
suspensas, de uma certa "ofegância" histórica ao mesmo tempo
exasperante e resignada.
Hoje, quando Chico Buarque
voltar ao palco para cantar o bis
(acompanhado de uma banda de
primeira, responsável pelo rigor
formal que caracteriza cada vez
mais sua obra), o público provavelmente ouvirá "Futuros Amantes", do CD "Paratodos". Diz a canção que "sábios em vão tentarão
decifrar o eco de antigas palavras,
fragmentos de cartas, poemas,
mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização". Talvez nem todos percebam ali o escafandrista
da canção, tateando timidamente
alguns despojos do Brasil.
Show: Chico Buarque em "As Cidades"
Quando: hoje e amanhã, às 22h, e domingo,
às 19h; até 2/5
Onde: Palace (al. dos Jamaris, 213, Moema,
São Paulo, SP, tel. 011/531-4900)
Quanto: de R$ 35 a R$ 75 (quinta e
domingo) e de R$ 40 a R$ 80 (sexta e sábado)
Patrocinadores: Kaiser e Mastercard
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