São Paulo, Sexta-feira, 26 de Março de 1999
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CHICO BUARQUE
Vestígios de estranha civilização

FERNANDO DE BARROS E SILVA
Editor interino de Opinião

Quando um grande artista se encasula ou submerge durante cinco anos, é útil prestar atenção ao que carrega consigo ao sair da toca ou vir à tona. Quando esse artista é Chico Buarque de Holanda, seria melhor ter lupa nos ouvidos para começar a decifrar o que traz escondido na concha.
Para além da tietagem inevitável que cerca a atual temporada no Palace, há vários aspectos notáveis e certamente mais relevantes nesse retorno de Chico à música com o CD e o show "as cidades", após cinco anos de exílio até certo ponto voluntário.
O primeiro deles, ainda externo à música, está na relação do artista com sua excelência, o mercado. Num ambiente em que praticamente toda a canção popular se submete ao relógio das gravadoras -CDs de Natal, hits do verão, temas de novelas, CDs de Carnaval, o diabo- , alimentando e se servindo da roda-viva dos programas de auditório (de Zezé di Camargo a Caetano Veloso), Chico Buarque segue alheio, para poucos.
Esse descompasso se desdobra em mal-estar e dissonância. O compositor está à margem da pasteurização festiva que domina a música popular (o pagode, o axé pop-carnavalesco baiano, o neo-sertanejo, versões recicladas pela indústria do samba, da cultura negra e da música caipira).
Seu país é anterior ao desvario que transformou a cultura popular numa mistura de padre Marcelo com Tiazinha, de Carla Perez com Ratinho. Em "as cidades", o compositor reitera um esforço, que as próprias canções tratam de frustrar, de resgatar o país da bossa nova, de reconhecer novamente a época em que "o Brasil parecia visível para todos nós", como disse em entrevista à Folha.
Daí a presença e a ausência no novo disco de Tom Jobim -a sua maior referência-, daí o lirismo desencantado porque privado de suas musas. Fica claro por exemplo no show o contraste entre as mulheres amáveis e reconhecíveis das canções dos anos 70 ("Terezinha", "Sob Medida", "O Meu Amor") e antimusas difíceis de cantar como "Iracema", que vive na América e "tem saudades do Ceará, mas não muita", ou "Cecília", a quem o compositor "chamava em silêncio".
Desde "Bye, Bye, Brasil", passando "Pelas Tabelas", até "Sonhos, Sonhos São", do novo CD, Chico vem entrelaçando uma espécie de vertigem pessoal com o delírio coletivo, numa espiral sem fundo em que as referências (individuais e nacionais) vão se tornando progressivamente escorregadias, enfumaçadas, irreconhecíveis.
Isso que Chico Buarque já definiu como sendo uma "barafunda mental" que lhe agradava explorar tem alcance histórico e está no centro do profundo mal-estar de um romance como "Estorvo", de 91.
Como no livro, a música de Chico persegue histórias que ainda possa contar, objetos e pessoas que ainda possa cantar, mas não há mais nada, apenas fantasmas, pedaços de cidades e de experiências imaginadas, pesadelos -uma espécie de vertigem que devolve o poeta para ao silêncio de que tentava se desembaraçar. A obra de Chico parece cada vez mais impregnada de "quases", de expectativas suspensas, de uma certa "ofegância" histórica ao mesmo tempo exasperante e resignada.
Hoje, quando Chico Buarque voltar ao palco para cantar o bis (acompanhado de uma banda de primeira, responsável pelo rigor formal que caracteriza cada vez mais sua obra), o público provavelmente ouvirá "Futuros Amantes", do CD "Paratodos". Diz a canção que "sábios em vão tentarão decifrar o eco de antigas palavras, fragmentos de cartas, poemas, mentiras, retratos, vestígios de estranha civilização". Talvez nem todos percebam ali o escafandrista da canção, tateando timidamente alguns despojos do Brasil.

Show: Chico Buarque em "As Cidades" Quando: hoje e amanhã, às 22h, e domingo, às 19h; até 2/5 Onde: Palace (al. dos Jamaris, 213, Moema, São Paulo, SP, tel. 011/531-4900) Quanto: de R$ 35 a R$ 75 (quinta e domingo) e de R$ 40 a R$ 80 (sexta e sábado) Patrocinadores: Kaiser e Mastercard

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