São Paulo, sábado, 26 de abril de 2008

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Crítica

Clássico de Melville virou um "Ulisses" americano

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Este livro, hoje considerado dos dez maiores romances da literatura mundial, esteve longe das badalações da crítica ao ser lançado em 1851. O autor, Herman Melville, publicara antes cinco novelas que lhe acenaram com certa notoriedade, embora o rotulassem como "narrador de aventuras de embarcadiço", sobre aspectos da vida nativa dos mares do Sul. A publicação de "Moby Dick", no entanto, iria coincidir com um período de expansão da literatura americana e, inserindo-se nela, Melville elaborou um projeto que pretendia não a simples narrativa aventurosa de uma caça de baleias, mas algo capaz de guindá-lo à posição de "Shakespeare do romance americano".
O livro, tratado numa linguagem multivalente e não raro poética, abrangeria questões religiosas, políticas, comportamentais, étnicas etc., debatendo-se num "maelström" com as grandes forças antagônicas do Bem e do Mal. A crítica oficial, de ambos os lados do Atlântico, não se comoveu com a narrativa, e Melville amargou uma quarentena que o levou a desistir da literatura.

Espírito de pioneirismo
O "revival" ocorreu quando a obra começou a ser identificada com o espírito de pioneirismo dos americanos e as qualidades de seu estilo assemelhadas às técnicas do romance moderno, por sua ambição de conciliar elementos díspares, mesclar gêneros híbridos, apelar para conhecimentos enciclopédicos marginais, utilizar vários registros de linguagem de acordo com a formação cultural de seus personagens.
Hoje, a crítica americana rotula "Moby Dick" como "o grande clássico" e "nosso maior romance", estudado nas escolas e universidades ao lado das mais importantes obras literárias produzidas na América. Tornou-se além disso um prato feito para os novos admiradores da corrente psicanalítica, que passaram a lhe atribuir complexos, recalques e traumas, esmiuçados em dezenas e dezenas de livros que hoje engrossam seu miliardário baú bibliográfico. A literatura norte-americana precisava de um "Ulisses". E foi a chance. Mas como reage o leitor de hoje diante de um "must" que está na obrigação de ler? Certamente afeito ao espírito de concisão de nossos dias, achará grande parte do livro enfadonha e pulará sem remorso algumas páginas de prolixa embromação. Mas logo se recuperará com a chegada de Ahab, em que identificará o papel do mocinho da novela.

Termos náuticos
Impossível não se render ao estilo de Melville com seu vocabulário detalhista de termos náuticos e as empolgantes descrições das noites e tempestades marinhas. O famoso sermão do padre Mapple, sobre a história de Jonas, será, em sua memória recente, contraponteado pelo "It ain't necessarily so", na voz de Sportin" Life. Os minuciosos capítulos sobre a vida, acasalamento e procriação das baleias lhe darão algo que pensar. Acostumado a ver "de perto" esses animais, no Animal Planet e no National Geographic, dificilmente acreditará no monstro encarnado na figura da baleia branca.
A imagem do vingativo Ahab será turbada pela lembrança do Greenpeace mostrando os canhões-arpoadores dos baleeiros modernos e corpos de baleias e filhotes sendo escarnados no convés de pesqueiros japoneses. Mas alguns anos depois, ele voltará a ler a história completa, guardando a distância necessária.

Ilustrações e realismo
Já o leitor veterano, que (sem ser Ahab) "se amarra" na baleia branca e já passou pelas traduções anteriores (Monteiro Lobato, Berenice Xavier e Péricles Eugênio da Silva Ramos), este irá encontrar na atual edição da Cosac Naify a "viagem" com que sempre sonhou. Desde a capa (dura) em que uma onda varre na areia os nomes de Moby Dick e de Melville, seguindo-se ilustrações de época que lhe dão o realismo do "décor", até a paginação que imita o ajoujo das ondas -tudo nela foi cuidado com um intuito de superação.
Um glossário ilustrado de termos náuticos, ampla bibliografia (inclusive em português) e os três artigos críticos fundamentais (Evert Duyckinck, D. H. Lawrence e F. O. Mathiessen) completam a edição. Os tradutores procuraram dar ao texto descritivo a fluência e propriedade que se esperam de uma grande tradução. Infelizmente o mesmo resultado não se vê nas falas, em que a tentativa de imitar certas deformações orais quase sempre resulta incongruente.


IVO BARROSO é poeta, crítico e tradutor.


MOBY DICK
Autor: Herman Melville
Tradução: Irene Hirsch e Alexandre Barbosa de Souza
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 99 (656 págs.)
Avaliação: bom

NA INTERNET
www.folha.com.br/folha/ilustrada
leia trecho do livro



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