São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2000


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GASTRONOMIA

O folclore da cachaça

GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

E m um estudo notável sobre a nossa mais difundida birita popular, o mestre Luis da Câmara Cascudo escreveu o clássico livro "Prelúdio da Cachaça", no ano de 1968. Obra-prima. O leitor interessado aí encontrará tudo acerca da "moça branca", a cana, a caninha, a canjibrina, a mundureba, a jiribita, cuja rica sinonímia rivaliza com a do diabo, valendo até vício, teima, mania, hábito, preferência.
Por exemplo: "Minha cachaça é mulher" ou "a cachaça dele é futebol".
O nome cachaça surgiu em Portugal, mas a denominação pegou aqui no Brasil, e não lá ou na Espanha. Caso típico de transmigração simbólica.
A primeira bebida destilada brasileira desde os finais do século 16, mencionada por cronistas e viajantes estrangeiros como Jorge Marcgrave, Antonil e Saint-Hilaire.
Pouca gente sabe, todavia, que a cachaça já foi um emblema nativista ou nacionalista em prol da independência do Brasil. A respeito desse aspecto militante da cachaça, escreve "dom" Luis da Câmara Cascudo: "Bebida dos patriotas, recusando os vinhos estrangeiros, especialmente os portugueses. A rua da Quitanda, na cidade de São Paulo, foi o beco da Cachaça e, em 1867, Richard Burton encontrou uma rua da Cachaça em São João del Rei".
No vocabulário nheengatu, tupi-guarani, língua que foi falada em São Paulo até o século 18, cauim é a água do bêbado, a bebida fermentada e espirituosa, ou seja, a cachaça. Entre os indígenas e negros era comum a expressão "comer água", na acepção de beber aguardente.
Nos finais dos anos 70, em Perdizes, São Paulo, em um bar fantástico chamado "Dagô", perto ali do campo do Palmeiras, alta madrugada, levei o cineasta Glauber Rocha para comer um excelente filé acebolado. Depois de findo o rango, conversando sobre o crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes e sobre o que queria dizer a existência de intelectual paulista que fosse intelectual brasileiro, fomos tomar um cafezinho em um boteco ao lado do "Dagô".
O cineasta dirigiu-se ao garçom com cara de nordestino e perguntou-lhe: "Onde é que está o são Jorge?". Aí o rapaz apontou um são Jorge desses de plástico que estava exposto bem visível na prateleira. Glauber reclamou, dizendo: "Esse não. Eu quero o são Jorge verdadeiro". Para o meu espanto, o garçom foi fuçar atrás da prateleira cheia de garrafas e pegou um copo com metade de cachaça dentro. "Aqui está o são Jorge", ele disse.
Recentemente, em viagem a Belo Horizonte, fui recebido pelo escritor Jarbas Medeiros em sua casa: um verdadeiro ágape greco-tupi regado a cachaça com pequi, a chamada "pingapequi". Coisa de louco. Uma delícia. O povo adora beber cana misturada ou temperada com gengibre, ruibarbo, umburana, junça, xarope, vermute e aniz. Foram os italianos que ensinaram os brasileiros a tomar cachaça com "fernet", o popular fernê. Entre várias e jubilosas talagadas, evocamos o crítico literário Eduardo Frieiro, que, embora dispéptico e abstêmio de álcool, foi um entusiasta da pinga mineira. Pinga de cabeça. Das Minas Gerais pródigas em engenhocas de moer cana e destilar aguardente. Aliás, no Brasil inteiro, temos uns 30 mil nomes de caninha.
Em seu livro "Arraial do Tijuco", o mineiríssimo Aires da Mata Machado Filho cita os versinhos populares:
"Óia como bebe
Esse povo do Brasi:
Inxuga um garrafom
Mai depressa que um funi".
Não poderia nesse contexto faltar uma sociologia da cachaça, assim como existe uma psicologia do sorvete. Os abonados de grana recebem a qualificação de "etílicos", enquanto os viciados de condição humilde são apontados como "cachaceiros" e "pinguços".
Temos de reconhecer que nada pode haver de mais triste neste mundo que duas pessoas sentadas em frente de uma garrafa de água mineral.
Não obstante o pai da medicina, Hipócrates, lá na Grécia antiga, ter asseverado que a embriaguez impede a vida longa, nosso povo continua enchendo a fuça de cachaça. Tomando pifão.
Segundo Luis da Câmara Cascudo, o cachaceiro entre nós goza de aura ou de maior simpatia popular do que o maconheiro e o cocainômano.


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