|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GASTRONOMIA
O folclore da cachaça
GILBERTO VASCONCELLOS
ESPECIAL PARA A FOLHA
E m um estudo notável sobre
a nossa mais difundida birita
popular, o mestre Luis da Câmara Cascudo escreveu o clássico livro "Prelúdio da Cachaça", no
ano de 1968. Obra-prima. O leitor
interessado aí encontrará tudo
acerca da "moça branca", a cana,
a caninha, a canjibrina, a mundureba, a jiribita, cuja rica sinonímia rivaliza com a do diabo,
valendo até vício, teima, mania,
hábito, preferência.
Por exemplo: "Minha cachaça é
mulher" ou "a cachaça dele é futebol".
O nome cachaça surgiu em Portugal, mas a denominação pegou
aqui no Brasil, e não lá ou na Espanha. Caso típico de transmigração simbólica.
A primeira bebida destilada
brasileira desde os finais do século 16, mencionada por cronistas e
viajantes estrangeiros como Jorge
Marcgrave, Antonil e Saint-Hilaire.
Pouca gente sabe, todavia, que
a cachaça já foi um emblema nativista ou nacionalista em prol da
independência do Brasil. A respeito desse aspecto militante da
cachaça, escreve "dom" Luis da
Câmara Cascudo: "Bebida dos
patriotas, recusando os vinhos estrangeiros, especialmente os portugueses. A rua da Quitanda, na
cidade de São Paulo, foi o beco da
Cachaça e, em 1867, Richard Burton encontrou uma rua da Cachaça em São João del Rei".
No vocabulário nheengatu, tupi-guarani, língua que foi falada
em São Paulo até o século 18,
cauim é a água do bêbado, a bebida fermentada e espirituosa, ou
seja, a cachaça. Entre os indígenas e negros era comum a expressão "comer água", na acepção de
beber aguardente.
Nos finais dos anos 70, em Perdizes, São Paulo, em um bar fantástico chamado "Dagô", perto ali
do campo do Palmeiras, alta madrugada, levei o cineasta Glauber
Rocha para comer um excelente
filé acebolado. Depois de findo o
rango, conversando sobre o crítico de cinema Paulo Emílio Sales
Gomes e sobre o que queria dizer
a existência de intelectual paulista que fosse intelectual brasileiro,
fomos tomar um cafezinho em
um boteco ao lado do "Dagô".
O cineasta dirigiu-se ao garçom
com cara de nordestino e perguntou-lhe: "Onde é que está o são
Jorge?". Aí o rapaz apontou um
são Jorge desses de plástico que estava exposto bem visível na prateleira. Glauber reclamou, dizendo:
"Esse não. Eu quero o são Jorge
verdadeiro". Para o meu espanto,
o garçom foi fuçar atrás da prateleira cheia de garrafas e pegou
um copo com metade de cachaça
dentro. "Aqui está o são Jorge",
ele disse.
Recentemente, em viagem a Belo Horizonte, fui recebido pelo escritor Jarbas Medeiros em sua casa: um verdadeiro ágape greco-tupi regado a cachaça com pequi,
a chamada "pingapequi". Coisa
de louco. Uma delícia. O povo
adora beber cana misturada ou
temperada com gengibre, ruibarbo, umburana, junça, xarope,
vermute e aniz. Foram os italianos que ensinaram os brasileiros
a tomar cachaça com "fernet", o
popular fernê. Entre várias e jubilosas talagadas, evocamos o crítico literário Eduardo Frieiro, que,
embora dispéptico e abstêmio de
álcool, foi um entusiasta da pinga
mineira. Pinga de cabeça. Das
Minas Gerais pródigas em engenhocas de moer cana e destilar
aguardente. Aliás, no Brasil inteiro, temos uns 30 mil nomes de caninha.
Em seu livro "Arraial do Tijuco", o mineiríssimo Aires da Mata
Machado Filho cita os versinhos
populares:
"Óia como bebe
Esse povo do Brasi:
Inxuga um garrafom
Mai depressa que um funi".
Não poderia nesse contexto faltar uma sociologia da cachaça,
assim como existe uma psicologia
do sorvete. Os abonados de grana
recebem a qualificação de "etílicos", enquanto os viciados de condição humilde são apontados como "cachaceiros" e "pinguços".
Temos de reconhecer que nada
pode haver de mais triste neste
mundo que duas pessoas sentadas em frente de uma garrafa de
água mineral.
Não obstante o pai da medicina, Hipócrates, lá na Grécia antiga, ter asseverado que a embriaguez impede a vida longa, nosso
povo continua enchendo a fuça
de cachaça. Tomando pifão.
Segundo Luis da Câmara Cascudo, o cachaceiro entre nós goza
de aura ou de maior simpatia popular do que o maconheiro e o cocainômano.
Texto Anterior: Palestra: Professor avalia pactos políticos Próximo Texto: Velha companheira de trabalho Índice
|