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Velha companheira de trabalho
COLUNISTA DA FOLHA
Há poucos anos, a revista
norte-americana "Drink"
divulgou seu ranking anual de bebidas mais vendidas no mundo
com uma surpresa: a campeã era
uma marca brasileira, a da cachaça 51. Que, naquele momento (e
pela única vez), batia a mais frequente vencedora, a Bacardi.
O espantoso é que a Bacardi fabrica e vende seu rum, com esse
nome, em diversos países. Já a 51
sagrava-se líder produzindo e
vendendo somente no Brasil. Um
exemplo da espantosa sintonia
entre a população brasileira e um
de seus produtos mais típicos, a
aguardente de cana-de-açúcar.
Uma sintonia que é difícil de ser
quantificada. As estatísticas oficiais situam a produção de cachaça brasileira na faixa de mais de
um bilhão de litros por ano, já
tendo chegado a mais de 1,3 bilhão. Esses são números oficiais;
mas, quando se imagina que somente em Minas Gerais -tradicional Estado produtor- estima-se que 7.000 dos 8.000 alambiques
existentes são clandestinos, fica
fácil imaginar que a conta não-oficial do consumo de cachaça supere facilmente os 2 bilhões de litros anuais.
São 100 milhões de doses tomadas diariamente; uma média de
mais de uma caixa de cachaça por
habitante a cada ano... Sem falar
da parte do santo.
É verdade que o grosso da produção está longe de representar o
que há de melhor no país. Sendo
uma bebida de forte apelo popular por sua "eficácia" etílica e pelo
preço baixo, a cachaça serve em
boa parte como anestésico matinal para o operário, que vai trabalhar duro jornada afora, e cujo(s)
primeiro(s) trago(s) às vezes
acompanha(m) a aurora.
A bebida funciona, nessa função, como companheira de trabalho, repetindo um pouco o efeito
que produzia sobre os escravos
dos engenhos brasileiros da passagem do século 16 para o 17, os
primeiros a bebericar aquela alegre bebida que resultava da fermentação dos restos de garapa.
Mas, ao lado da bebida mais
corrente, industrializada, existem
também dezenas de marcas de cachaças brasileiras capazes de comover gourmets de qualquer parte do mundo.
São produzidas de forma artesanal: ao caldo-de-cana é adicionado fubá torrado para produzir
a fermentação, que acontece em
dornas por um ou dois dias; esse
"vinho da cana", já alcoólico, depois passa por destilação em
alambiques de cobre, aquecidos
com a combustão do próprio bagaço da cana.
Os melhores produtores utilizam somente o "coração" da destilação, desprezando a "cabeça"
(líquido produzido no início, considerado mais tóxico) e a "cauda"
(o final da destilação).
Muitas vezes, isso significa a rejeição de 70 por cento do líquido
destilado. Mas vale a pena: a bebida resultante perde agressividade,
é mais aveludada e aromática e,
depois de envelhecida em tonéis
de madeira, poderá ficar mais redonda e aprofundar seus aromas.
Depois de conhecer esses cuidados na produção, duro é ouvir do
garçom, quando peço uma caipirinha: "De vodca?", é sempre a
resposta.
Pior ainda é quando, relatada
minha preferência, tenho de escutar que a casa não serve cachaça.
Como se, ao fixar-se em bebidas
supostamente mais nobres, o lugar pudesse esconder sua melancólica ignorância e breguice.
(JOSIMAR MELO)
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