São Paulo, sexta-feira, 26 de maio de 2000


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Velha companheira de trabalho

COLUNISTA DA FOLHA

Há poucos anos, a revista norte-americana "Drink" divulgou seu ranking anual de bebidas mais vendidas no mundo com uma surpresa: a campeã era uma marca brasileira, a da cachaça 51. Que, naquele momento (e pela única vez), batia a mais frequente vencedora, a Bacardi.
O espantoso é que a Bacardi fabrica e vende seu rum, com esse nome, em diversos países. Já a 51 sagrava-se líder produzindo e vendendo somente no Brasil. Um exemplo da espantosa sintonia entre a população brasileira e um de seus produtos mais típicos, a aguardente de cana-de-açúcar.
Uma sintonia que é difícil de ser quantificada. As estatísticas oficiais situam a produção de cachaça brasileira na faixa de mais de um bilhão de litros por ano, já tendo chegado a mais de 1,3 bilhão. Esses são números oficiais; mas, quando se imagina que somente em Minas Gerais -tradicional Estado produtor- estima-se que 7.000 dos 8.000 alambiques existentes são clandestinos, fica fácil imaginar que a conta não-oficial do consumo de cachaça supere facilmente os 2 bilhões de litros anuais.
São 100 milhões de doses tomadas diariamente; uma média de mais de uma caixa de cachaça por habitante a cada ano... Sem falar da parte do santo.
É verdade que o grosso da produção está longe de representar o que há de melhor no país. Sendo uma bebida de forte apelo popular por sua "eficácia" etílica e pelo preço baixo, a cachaça serve em boa parte como anestésico matinal para o operário, que vai trabalhar duro jornada afora, e cujo(s) primeiro(s) trago(s) às vezes acompanha(m) a aurora.
A bebida funciona, nessa função, como companheira de trabalho, repetindo um pouco o efeito que produzia sobre os escravos dos engenhos brasileiros da passagem do século 16 para o 17, os primeiros a bebericar aquela alegre bebida que resultava da fermentação dos restos de garapa.
Mas, ao lado da bebida mais corrente, industrializada, existem também dezenas de marcas de cachaças brasileiras capazes de comover gourmets de qualquer parte do mundo.
São produzidas de forma artesanal: ao caldo-de-cana é adicionado fubá torrado para produzir a fermentação, que acontece em dornas por um ou dois dias; esse "vinho da cana", já alcoólico, depois passa por destilação em alambiques de cobre, aquecidos com a combustão do próprio bagaço da cana.
Os melhores produtores utilizam somente o "coração" da destilação, desprezando a "cabeça" (líquido produzido no início, considerado mais tóxico) e a "cauda" (o final da destilação).
Muitas vezes, isso significa a rejeição de 70 por cento do líquido destilado. Mas vale a pena: a bebida resultante perde agressividade, é mais aveludada e aromática e, depois de envelhecida em tonéis de madeira, poderá ficar mais redonda e aprofundar seus aromas.
Depois de conhecer esses cuidados na produção, duro é ouvir do garçom, quando peço uma caipirinha: "De vodca?", é sempre a resposta.
Pior ainda é quando, relatada minha preferência, tenho de escutar que a casa não serve cachaça. Como se, ao fixar-se em bebidas supostamente mais nobres, o lugar pudesse esconder sua melancólica ignorância e breguice.
(JOSIMAR MELO)

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