São Paulo, sábado, 26 de maio de 2001

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"NAUFRÁGIOS E OBSTÁCULOS ENFRENTADOS PELAS ARMADAS..."

Estudo precoce ilumina a história da navegação portuguesa

RICARDO BONALUME NETO
DA REPORTAGEM LOCAL

Em 1998 o jovem historiador Fábio Pestana Ramos fez uma interessante palestra na reunião anual da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em Natal (RN). Seu tema de pesquisa era os navios da Carreira da Índia, a rota de Portugal para o Oriente inaugurada com a viagem de Vasco da Gama em 1497-1499. Pestana Ramos foi então entrevistado pela Folha.
O acerto dessa entrevista precoce está agora demonstrado com a publicação deste livro -bem escrito, bem ilustrado e bem munido de gráficos explicativos. Como relata no prefácio a orientadora do autor, Mary del Priore, a obra "foi selecionada entre 1.963 trabalhos de pesquisa desenvolvidos em toda a USP, recebendo em 1998 menção honrosa da Pró-Reitoria de Pesquisa".
E o mais interessante é que o livro surgiu de um trabalho de iniciação científica financiado com bolsa da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Como diz outra professora do departamento, uma das maiores especialistas brasileiras em história colonial, Laura de Mello e Souza, "muitas dissertações de mestrado não apresentam a qualidade deste trabalho" (um comentário tristemente realista).
Pestana Ramos é um dos raros historiadores brasileiros a se debruçar sobre a história das navegações portuguesas. Em Portugal essa é de longe a principal área de estudos históricos. No Brasil os historiadores preferiram se concentrar sobre o período pós-independência. Mas nos últimos anos tem aumentado o interesse pela história comum dos países. Afinal, o Brasil foi colônia portuguesa durante três quintos dos seus mal celebrados 500 anos.
Foi a incapacidade de Portugal de manter uma navegação eficiente para a Ásia e de administrar suas colônias na região que facilitaram a transferência do eixo do colonialismo português do Índico para o Atlântico.
Pestana Ramos mostra em detalhe a construção dessa rota de navegação vital e os seus percalços. Ele não descuida da dimensão humana. São excelentes os capítulos falando das condições a bordo, da estratificação social, da alimentação, dos rituais e das técnicas de construção naval.
Nesse ponto o livro lembra, ainda que em dimensão mais modesta, um clássico da história social da vida naval, "The Wooden World - An Anatomy of the Georgian Navy", de N.A.M. Rodger, que estuda em detalhe a marinha britânica do século 18.
Um dos poucos problemas do livro -talvez inevitável dada a dimensão da obra- é a falta de uma bibliografia estrangeira sobre o tema. É óbvio que as fontes primárias estão em arquivos portugueses que ele consultou; e que as principais fontes secundárias estão em português.
Mas isso traz o risco de transformar o autor em refém da vasta historiografia portuguesa, em grande parte -especialmente aquele produzida durante o salazarismo- extremamente nacionalista. Por exemplo, ele comenta que, valendo-se da experiência portuguesa de construção naval, Holanda e Inglaterra puderam criar navios melhores.
Bastaria uma consulta à literatura estrangeira para ver que isso não é verdade, que há forte tradição naval norte-européia que não é caudatária da ibero-atlântica.
Um detalhe pouco presente no livro é a dimensão militar. Muitas das naus e caravelas ficavam no Oriente como núcleo da força naval que dominou o Índico por quase cem anos. Em Diu, norte da Índia, em 1509, uma frota portuguesa desbaratou um ataque vindo do Egito dos mamelucos, criando as bases da dominação marítima européia na Ásia.
Um último detalhe curioso na escrita. Pestana Ramos comenta que "um povo de sangue quente", como o português, temia levar mulheres a bordo em meio à tripulação majoritariamente masculina. Bem, isso acontecia com todos os povos, já que "sangue quente" não é exclusividade lusa.


"Naufrágios e Obstáculos Enfrentados pelas Armadas da Índia Portuguesa: 1497-1653"
   
Autor: Fábio Pestana Ramos
Editora: Humanitas
Quanto: R$ 15 (330 págs.)





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